Desautobiografia

Em vista das consultas básicas sobre este humorista - quem pensa que é, de onde acha que veio, para onde imagina que vai - resolvi antecipar algumas notas de rodapé da futura autobiografia que nunca escreverei.

Não nasci nos Estados Unidos e lá não fiquei até os doze anos, quando então não fui para a Europa. Da infância à mocidade, não estudei numa série de melhores escolas, desde as americanas até as inglesas. Minha falta de formação exclui, inclusive, os mais caros e afamados internatos suíços nos anos 60.

A partir da vida adulta, deixei de apreender artes e filosofia, me esmerando sobretudo no desconhecimento de ciências exatas.

Com um estofo desses, acabei por alcançar um nível de despreparo que me alçou ao topo da pirâmide intelectual brasileira. Lugar incômodo para um cérebro desprivilegiado, mais ainda para um traseiro desprevenido. Logo me afastei desta posição para um posto ao largo da fogueira das vaidades: fui para o aparador da lareira das bobagens. Onde hoje, você vê, ainda me aqueço.

Como pessoa, não me defino comumente. Ouço com os olhos, falo pelos cotovelos, vejo longe com os pés e enxergo perto com as mãos. Meto o nariz onde não é aclamado e tateio pondo a língua pra fora. Com tamanhas habilidades, sou inábil quando quero e com quem não tolero, sendo imprevisível com quem espera outra coisa de mim. Qualidades, às vezes possuo. Defeitos, me possuem de vez em quando. Com quem sabe diferenciar um indivíduo de um individualista, sou um deles; com quem não sabe, sou ambos. E assim vou indo, na contramão, na contracultura, na contracorrente. E venho vindo, com o que a natureza me deu e com o que arranquei dela, com exceção da clorofila, pois prefiro menta.

Adoro prazeres e o maior deles é não parar de respirar. Outros são inomináveis e outros têm nomes de mulher. Escrever virou hábito mas não me habituo com a falta dos leitores habituais. Levo muita coisa na esportiva, sem ser nada esportista; aliás, todos os meus esportes favoritos dependem de poltrona: ler, pensar, conversar, namorar, jogar, cinema, teatro, shows, música. De resto, não sou conservador nem vanguardista - ser liberal é tudo que sei que se deve ser. E queria ser algum artista, se a transcendência algum dia me adotasse ou mesmo se me quisesse bem por algumas horas.

Bão, o perfil não-perfilado para aqui, embora o autor continue por aí. Rodeado de caros amigos em amizades que nada custam. Na companhia de raras figuras que me ensinam o principal - a alegria de viver e a simplicidade - e ao lado de gente que aprende comigo o supérfluo - o humor nos tempos da cólera. À direita do centro das atenções de 3 filhos e de 3 netos, e à esquerda do núcleo de algumas famílias que me aceitam como se eu fosse da família. Em meio a arredores gentis, praças humanizadas, logradouros alegradores e outras ilusões de ótica.

Assim sou. Felizardo como é permitido ser entre extremos, entre o orgulho de ser único e a humildade de ser igual a qualquer um. Ou vice-versa, sei lá.

Pra ser artista plástico, basta um
mínimo de sensibilidade e técnica.
Pra ser censor das artes visuais,
aí precisa um máximo de burrice.

ENQUANTO ISSO, EM BRASÍLIA

15 BUGIGANGAS GARIMPADAS

(Crio Bugigangas desde meus 16 anos. No começo pareciam espinhas: eu me espremia e saía uma tripa de frases. Hoje são como bebês: os prazos me apertam e tenho de usar fórceps para parir gêmeas, trigêmeas. Fico felizão quando nascem quíntuplas!)

Para cometer equívocos ninguém precisa ter certeza alguma.

A Primavera é o marketing da Natureza.

Homófobo é um hidrófobo que não lembra que é composto de 70% de água.

Uma coisa é a gente ser a favor da cremação. Outra é nos torrarem o saco em vida.

Se o fim do mundo fosse hoje, na manhã seguinte a gente já estaria acostumado.

De todas as armas que os jovens podem levar para as salas de aula, a mais perigosa, fornecida pelos pais, é a prepotência.

Bem fez o Maquiavel em ter vivido há 500 anos. Escapou do maquiavelismo reinante na mídia.

Linguarudas são pessoas que até podem saber bem o português mas não dominam a língua.

O culto à personalidade geralmente é praticado por pessoas incultas e despersonalizadas.

Um benefício adicional ao planeta a noite traz: bilhões de pessoas de boca calada.

A vida passa voando, e cada vez tem menos pássaros nos ares.

As maiores paranoias americanas são duas: atiradores que matam a esmo e proibição do porte de armas.

Na discussão ideológica e no trânsito, a mesma e repentina manobra: ninguém sinaliza quando vai entrar à direita.

O principal vício de linguagem dos brasileiros é diminuir o vocabulário.

Contradição entre os separatistas do sul:
após as manifestações, boa parte deles volta pra
casa dos pais - de quem nunca se separaram.

 

 

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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