Desleitura

Hoje vou experimentar escrever nada que se aproveite.Já estou na segunda linha e, somando com a anterior, lá vão dezenas de dígitos que não …






















Hoje vou experimentar escrever nada que se aproveite.
Já estou na segunda linha e, somando com a anterior, lá vão dezenas de dígitos que não querem dizer absolutamente nada.
Então, até aqui, também não faz nenhum sentido ler.
Mas aí basta colocar um "mas aí" e a coisa parece mudar de figura.
Porém, mudou apenas o parágrafo.
Não escrever nada é quase tão difícil quanto escrever algo. A falta de intenção seria um propósito? Ou, vários despropósitos seguidos perfazem um conteúdo?
Perguntar por perguntar também acrescenta? E se se fizer isso seguidamente?
Insistentemente? E se se parar de perguntar, ganha-se um objetivo?
Não, já decidi que não irei consubstanciar este bloco de texto.
Talvez seja a negação da afirmação autoral. Sei lá.
Que precisa apenas de algumas linhas subseqüentes para alcançar ou ampliar a inconseqüência até aqui tão bem constituída.
Relendo - fiz isso; você, não sei - não constato consistência. Alívio. Se é
trabalhoso manter a coerência num texto que pretende a coerência imagine
num que a dispense.
Então, tão bem-sucedido, ouso continuar. Com o quê, Fraga?
A não dizer coisa com coisa. Porém com toda a maestria possível. Fluência.
Construções claras e sucintas. Legibilidade.
E se eu não me descuidar nas últimas frases e não enfiar nenhum argumento válido, terei obtido, depois desse longo vazio, certa credibilidade.
Cabendo uma pausa, pus.
Agora que você me acompanhou nessa divagação inútil e desconforme,
vá até o fim.
Pois acabou.
A nenhuma conclusão cheguei, você não seguiu meu raciocínio,
nada de memorável ficou registrado. Nem posso dizer que é um total absurdo, porque vou deixar incompleto.
Esse tipo de criação, em que as pessoas são levadas a não-ler lendo,
tem nome. É inominável.
Leis - interprete como quiser(I).

Para cada cheque emitido, deve haver um descontado. É a Lei da Compensação.


Quando um sujeito bate, outro apanha. É a Lei do Mais Forte.


Ser solteira é o principal requisito para ser mãe solteira. É a Lei do Ventre Livre.


Os cofres públicos e o orçamento da União são incompatíveis. É a Lei de Meios.


Quem tem senhorio sempre paga por isso. É a Lei do Inquilinato.


Um homem muito machucado cai igual a um menos ferido. É a Lei da Gravidade.


A culpa dos erros ortográficos é da ortografia. São as Leis Gramaticais.


Depois do toque de recolher, o medo a toque de caixa. É a Lei Marcial.


Cego por cego, banguela por banguela. É a Lei de Talião.


Toda legislação contra o racismo sabe o seu lugar. É a Lei Afonso Arinos.


Proibir os alambiques de funcionar arrebenta os fígados. É a Lei Seca.


Se uma árvore não é nativa, é exótica. É a Lei da Selva.


Para se tornar preguiçoso não se deve mover uma palha. É a Lei do Menor Esforço.


Qualquer um pode meter a mão em negócios imobiliários. É a Lei de Luvas.


Tudo tem um curso que não se sabe bem qual é. É a Lei do Destino.


Cada um que cuide do seu slogan, lema ou tititi. É a Lei de Murici.


O suor produzido pela ginástica escorre para baixo. São as Leis da Física.


Faz de conta que os tribunais julgam direito. É a Lei Formal.


(Continua na próxima coluna)

O homem é o único animal?

? que se acha único.
? que rumina sem ter ingerido nada.
? que trata o seu semelhante como bicho.
? que demarca território com título de propriedade.
? que pasta com guardanapo no pescoço.
? que se comunica com os demais por onomatopéia.
? que dá coice sem ter cascos.
? que imprime dinheiro (verdadeiro e falso).
? que vai ao zôo.
? que deixa herança.
? que tem quadrilha como coletivo.
? que faz a toca e depois a vende ou aluga.
? que segue um calendário e não sabe que dia é hoje.
? que interrompe a gestação de propósito.
? que simula o que não sente.
? que faz cemitérios, cria datas para visitas e não vai.
? que tem necessidade de manuais de instruções e os maldiz.
? que tempera os outros animais que come.
? que se depila.
? que tem esperanças.
Etc.


Continuação de um mote de domínio público, revisitado por inúmeros
autores, e especialmente depois da lista de Luis Fernando Veríssimo
no livro Poesia Numa Hora Dessas?!

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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