É tempo de mudança, desapego e guarda compartilhada

Por Márcia Martins

A ursa Tati, com seus olhos claros e enormes e um pelo felpudo ainda branco, nem de longe encardido apesar de ser jogada de um lado para o outro, me encarou de um jeito desafiador, como a perguntar se, após mais de 25 anos juntas eu teria realmente a coragem de dispensá-la. Tati está comigo desde o segundo trimestre da minha gravidez, quando eu tive 70% de certeza de que não iria sofrer um novo aborto espontâneo e que, enfim, a segunda gestação chegaria até o fim. Nos 10 dias que precederam a chegada da minha filha, quando sai de licença para repousar e aguardar a hora do parto, colocava Tati equilibrada na imensa barriga e era cúmplice das conversas, promessas e sonhos que tinha com a Gabriela que sossegava no meu ventre.

No início da tarde de terça-feira, depois de examinar o bichinho de pelúcia e perceber que não tinha mais remendo, não tinha mais enchimento, não tinha mais como eu tentar reconstituir seu corpo e seu vestidinho rodado com listras azuis, que sobreviveu como conseguiu aos cinco cachorros (Banzé, Dalai, Gandhi, Ravi e Quincas), resolvi, com dor no coração, desfazer-me da Tati. E assim, numa mistura indigesta de tristeza, de vazio, de saudade, de traição, de desassossego, de solidão e levando lembranças de momentos importantes da minha vida, Tati se foi. Eu a deixei partir. Eu a libertei de compromissos. Eu a entreguei para outro mundo. Eu a preparei para a vida.

O ato de desapegar de Tati deflagrou um processo que irá me envolver nos próximos dias. Mesmo que ele esteja ocorrendo, de maneira lenta e gradual desde o início do ano, quando a minha filha começou a ficar, mais dias e noites na casa da namorada, agora tem um caráter de urgência porque Gabriela irá, em breve, morar com a sua amada. Não tenho por que manter os gastos de aluguel de um apartamento de dois quartos. E enquanto procuro imóveis aqui pela região com metragem mínima para abrigar meus discos, meus livros e nada mais, e um valor de aluguel que não arrebente mais meu orçamento, percebo que necessito desapegar sim de muitas coisas.

Não será possível carregar tanta bagagem na mudança de um apartamento de dois quartos para um imóvel de um quarto porque a diminuição de espaço é espantosa. Chega a assustar tamanha diferença. Não será permitido levar as caixas e caixas de fotografias de várias fases da minha vida e de todas as festas, formaturas, apresentações e travessuras de Gabriela. Não existirão armários suficientes para acomodar tantos livros, LPs (sim, eu ainda os tenho), CDs, DVDs, pedras da sorte, bruxas e duendes das mais diversas cores e feições, budas e as pedras dos signos, de proteção e demais amuletos. Serão necessárias várias e pesadas sessões de desapegos.

Declaro, então, aberta a temporada de mudança, desapego e guarda compartilhada. Sim, porque o cusco que eu e Gabriela adotamos, o Quincas Fernando Martins, há uns dois meses, experimenta a sensação de guarda compartilhada. Um pouco comigo e um pouco com Gabriela. Nesta fase inicial deste processo, Quincas fica no meu apartamento durante a semana e na tarde de sexta-feira é levado para o apartamento da minha nora, de onde retorna, cansado e um pouco confuso com as novidades, no domingo à noite. A mala do cachorro está sempre pronta. E ele preparado para ser feliz e paparicado nas duas casas. Com a vóvis e a mamis.

A mudança de Gabriela, assim como o desapego da ursa Tati, exigirá de mim uma boa dose de superação, de coragem, de valentia e renovação. Sabemos que os filhos não são nossos, mas o que entendemos na teoria nem sempre é assim tão bem vivenciado na prática. Não se trata de um atestado de egoísmo meu. É mais uma confissão de que viverei momentos conflitantes, sentimentos instáveis, emoções sujeitas a altos e baixos e retratos do passado em preto e branco ilustrando as páginas das minhas memórias. Sobreviverei. As mães, embora nem sempre demonstrem, são fortes e preparadas para a vida. Para as mudanças, os desapegos, os compartilhamentos.

Gabriela será feliz. Gabriela é de uma responsabilidade enorme. Gabriela tem uma luz divina. Gabriela já trilha e continuará desenhando um caminho bonito. Eu a deixei partir para novas aventuras. Eu a libertei de compromissos. Eu a entreguei para outro mundo. Eu a preparei para a vida.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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