Em busca de um lar

Um dos nomes mais celebrados da arte contemporânea, o chinês Ai Weiwei foi o principal homenageado da Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo. O artista, diretor e ativista político criou, inclusive, o cartaz da recente 41ª edição do festival, que reproduzia uma escultura sua em mármore branco de dois antebraços masculinos cumprimentando-se, em sentido vertical - por conta dessa posição, a imagem remete tanto a um corriqueiro aperto de mãos quanto a um gesto de ajuda. A mostra exibiu dois filmes relacionados com o famoso criador: 'Ai Weiwei: Sem Perdão', documentário da diretora norte-americana Alison Klayman sobre a obra e a vida do chinês, e 'Human Flow - Não Existe Lar se Não Há para Onde Ir', realizado pelo próprio artista. Atualmente em exibição na capital gaúcha, 'Human Flow' é obrigatório: o painel levantado por Weiwei dos desterrados políticos do mundo é impressionante e deve ser visto por todos.

O projeto é ambicioso: durante um ano, o diretor e sua equipe visitaram 40 campos de refugiados em 23 países de quatro continentes, dando rosto e voz a integrantes das cerca de 65 milhões de pessoas obrigadas atualmente a viver longe de seus lugares de origem por causa de conflitos e problemas políticos. Trata-se do maior deslocamento humano desde a II Guerra. A candente questão dos refugiados, aliás, talvez tenha sido o tema mais presente da última mostra cinematográfica paulistana, abordado em dezenas de títulos - inclusive por outro imperdível longa também em cartaz em Porto Alegre: 'O Outro Lado da Esperança', comédia agridoce sobre um clandestino sírio tentando ser aceito na Finlândia, que rendeu ao diretor Aki Kaurismäki o Urso de Prata no Festival de Berlim. O doc de Weiwei amplifica essa problemática ao mostrar dramas de sírios e iraquianos, da minoria muçulmana em Mianmar e dos palestinos na Faixa de Gaza, dos mortos que tentam cruzar a fronteira do México com os Estados Unidos ou chegar à Europa em barcos superlotados partindo do norte da África.

'Human Flow' reúne depoimentos de pesquisadores, políticos e integrantes de entidades humanitárias, além de informações e dados que denunciam a gravidade dessa crise mundial e contextualizam cada situação específica abordada. Um dos dados mais chocantes aponta que 70 países tinham muros em suas fronteiras em 2016, sendo que, na época queda do Muro de Berlim, em 1989, existiam 11 nações cercadas. O filme costura essa abordagem jornalística com inspirados textos curtos de escritores e pensadores que aparecem em letreiros na tela, como uma citação do poema 'In Jerusalem', do árabe de origem palestina Mahmoud Darwish: 'Você me matou... e eu esqueci, como você, de morrer'. Mas a forma mais contundente que Weiwei encontrou para esboçar essa cartografia de êxodos é mergulhar o espectador nessa realidade, partindo de belas tomadas aéreas até aterrissar no meio dos cenários onde se desenrolam esses dramas terríveis: campos superpopulados e insalubres, embarcações abarrotadas prestes a naufragar, rotas intermináveis percorridas a pé da Turquia até a Alemanha, cercas e muros intransponíveis. Dissidente político que passou um tempo em prisão familiar em Beijing e cujo pai foi um intelectual forçado a permanecer anos em um campo de reeducação na China, Weiwei conversa e interage com refugiados das mais diferentes latitudes, etnias e crenças, estabelecendo com eles uma conexão que supera diferenças e alicerça-se em uma vivência comum de expatriado.

A empatia que o artista chinês sente pelos entrevistados que encontra em seu périplo, no entanto, não é um sentimento exclusivo de quem já experimentou esse tipo de tragédia - ser expulso de sua terra, testemunhar familiares morrerem na guerra ou na fuga, perder o contato com os entes queridos. É impossível não se comover diante do quadro pintado em 'Human Flow', independentemente do quão distante possa nos parecer o cotidiano ingrato dessas pessoas - na verdade, uma impressão confortadora mas falsa, que não resiste à primeira esquina de Porto Alegre em que você topa com algum senegalês ou haitiano vendendo produtos na rua. 'Human Flow' lembra-nos que, se a desgraça foi globalizada, podemos enfrentá-la derrubando as muralhas que impedem a solidariedade de igualmente cobrir o planeta inteiro.

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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