Estatuto do Idoso, o passageiro da chuva

O Estatuto do Idoso é um guri de três anos. Sabe pouco da realidade nacional.Mas tem boa índole. Quer conferir como a vida se …






















O Estatuto do Idoso é um guri de três anos. Sabe pouco da realidade nacional.
Mas tem boa índole. Quer conferir como a vida se adapta a ele. Decide passar uns dias fora dos gabinetes públicos, esses lugares em que a vida passa em várias vias. Por via das dúvidas, ele vai para a via pública.

Antes da aventura no transporte coletivo, o Estatuto do Idoso se disfarça. Nem parece tão estatutário. Vê a si mesmo como alguém que já passou dos 60. Baixinho como é, sua fragilidade aumentou.


O Estatuto do Idoso segue para uma parada de ônibus. Dia chuvoso. Sob um abrigo, se mistura ao povo. Na calçada estreita, aglomeração. Pasmaceira, interrompida a cada ônibus que se aproxima. Aí, correria. O curto trecho do abrigo comporta três ônibus. Num vai-vem, as pessoas lutam pra não perder o ônibus que estaciona aqui ou lá, ali ou acolá. Empurrões, esbarrões, safanões. No meio, estabanado, o Estatuto do Idoso quase se estatela no chão.


Enquanto não chega o ônibus que escolheu, o Estatuto do Idoso observa o porquê dos banhos pelas costas: os abrigos oferecem pouca proteção, o aguaceiro cai, a água empoça e os carros esparramam ondas seguidas sobre
a pequena multidão. O Estatuto do Idoso se estafa pra não se molhar.


Aí o Estatuto do Idoso fixa a atenção nas chegadas dos ônibus. Nos letreiros dos veículos. O Estatuto do Idoso é jovem, enxerga longe, porém, estarrecido, vê o esforço dos velhos na identificação dos letreiros. Eles não vêem direito. Quer dizer, além das deficiências, a leitura não é nítida.


Os ônibus, soube ele, adotaram um painel luminoso, que permite compor qualquer palavra com luzinhas. Um sistema que depende das condições da hora, da velocidade dos ônibus e da perspectiva na plataforma. Pra piorar a confusão, quase todos os painéis trocam duas e até três vezes as informações das linhas,
rapidamente.


O resultado é a insegurança dos passageiros. Eles têm que consultar os motoristas para confirmar. O Estatuto do Idoso, estacado, aguarda um ônibus com letreiro antigo, pintado, letras graúdas. Alívio: um ônibus assim aponta.
A angústia se vai mas todos sobem, estouvados meio à pressa, nota o estupefato Estatuto do Idoso.


Ele entra. Agora o Estatuto do Idoso precisa sentar. O tumulto lá fora e os apertos aqui dentro pedem conforto. Aqui antes da roleta deveria ser o paraíso dos idosos. Mas, está tudo ocupado. Por direito, metade estão onde merecem. Por má indiferença, os outros 50% dos lugares estão ocupados por gente mais moça, até estudantes. Que fingem não ver o Estatuto do Idoso ao lado, esperando o privilégio legal. Fingem dormir, fingem ler, fingem estar em outro planeta.


O Estatuto do Idoso, vendo tantos estúpidos acomodados e tantos outros velhos em pé na área restrita, busca ajuda no cobrador. Exige seu espaço estipulado por lei. O cobrador mal olha o Estatuto do Idoso quando resmunga: "Isso não é problema meu." Não é. É de legislação. Talvez a legenda do cartaz devesse ser mais proibitiva, menos conscienciosa. "Assentos reservados" e "Assentos preferenciais" são sutilezas insuficientes.


O ônibus se movimenta, os arrancos sacodem as pessoas. O Estatuto do Idoso por pouco não fica estendido no piso. Até que sobra um lugar. Ele cede a vez para uma senhora. Para ela, o assento é inacessível, encarapitado sobre uma roda. Então o Estatuto do Idoso analisa o conforto: falta espaço para as pernas aqui, aqueles lá têm a roleta barrando a entrada, estes somem diante do encosto da frente. Estourado, O Estatuto do Idoso reclama. Há um clamor e ele percebe que somente os idosos fazem coro ao apelo por educação ou gentileza. Até que alguém, por culpa ou vergonha, sabe lá, levanta e o Estatuto finalmente vai descansar.


Estarrado no seu mínimo lugar - que sabem de ergonomia os construtores de carrocerias? - O Estatuto do Idoso cochila. Quando acorda, é hora de
retornar. Faz ginástica para sair do banco, se espreme por entre os ue não conseguiram ultrapassar a roleta, e está a um passo de descer. É quando enfrenta a mais nova estupidez nas ruas: pessoas querendo subir antes das pessoas descerem. Numa convulsão de corpos, o Estatuto do Idoso finalmente sai.


Agora, a viagem de volta. O Estatuto do Idoso pensa. Sabe que ainda vai ter de conferir outros direitos seus. Suspira. Lá vem um ônibus. Qual será?

Domingo retrasado, 6 de agosto, o Brasil perdeu Moacyr Santos. Com uma história de vida à la Dickens (órfão e pobre), o pernambucano Moacyr Santos foi um self-made man nesta terra de inoportunidades. Autodidata, fez-se músico: multiinstrumentista, compositor e maestro. Admirado e respeitado de Tom Jobim para baixo, esteve na raiz da criação da bossa-nova e fez trilhas sonoras para o cinema-novo e para Hollywood, onde chegou a fazer parceria com Henry Mancini. Sua conceituadíssima trajetória profissional se dividiu entre o Brasil e o auto-exílio nos EUA; lá, Moacyr Santos ficou conhecido como o Duke Ellington brasileiro. Para se iniciar no prazer da sua magistral criação, há dois tesouros disponíveis em CDs: o duplo Ouro Negro, de 2001, e Choros & Alegrias, de 2005. São duas compilações com faixas primorosas, que respeitam seus ousados e criativos arranjos originais. Se você acha que usei adjetivos demais, confira as Coisas de Moacyr Santos. Aí acrescente mais um: genial. (Fora das raras lojas que têm, com certeza você encontra cada um aqui e aqui)

Bimestral e sensacional. Outra proeza gráfica do Miran, numa edição que traz de abre-alas nada mais nada menos que 50(!) páginas do incomparável caricaturista e ilustrador uruguaio Hermenegildo Sábat. Um show de imagens com dupla maestria: Sábat entra com belíssimos desenhos e pinturas e Miran com seu dom para compor páginas refinadas. E o deslumbrante desfile da Gráfica #57 não pára: veja a fotografia impressiva de Arnaldo Pappalardo (BR), os badalados logotipos de Margo Chase (EUA), a arte caligráfica e colagem de Walter Mancini (BR) e ainda uma homenagem ao papa Ikko Tanaka (JP). Enfim, cuidado para não babar a revista enquanto folheia! (Para saber mais sobre a Gráfica, clique aqui. Para saber onde comprar, clique aqui)

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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