Fogo e vento

"Que importa restarem cinzas

se a chama foi bela e alta?

Cantemos a canção da vida,

na própria luz consumida?"

(Mario Quintana)

Aquele foi um ano estranho, marcado por fogo, labaredas e vento. Tudo começou quando uma multidão enfurecida emergiu dos lados do Bom Fim, entrou na rua Fernandes Vieira e pararam diante da Fábrica Giampoli. Gritaram, saquearam e atearam fogo. Só sobraram as paredes. Ninguém entendeu a razão daquilo, pois os gringos da Giampoli não eram fascistas, dedicavam a vida a fazer balas de frutas, doces e guloseimas.

Aquele também foi o ano em que o velho Armindo adormeceu com um cigarro aceso e queimou seu rancho que ficava junto ao Camaquã. Ainda lembro as altas chamas no meio da noite, lançando fagulhas para o céu e assustando os cavalos. E de minha mãe tapando meus olhos para não ver o fogo queimando tudo.

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Mesmo assim, foi um ano que trouxe coisas benfazejas. Como a chegada da luz elétrica na fazenda do Passo Grande, expulsando escuridão das longas noites de Inverno. Fizeram uma festa grande no dia em que o cata-vento Made in USA foi instalado na torre de toras de eucalipto.

Recordo - era um fim da tarde, o sol baixando rubro como fogo no horizonte. Soprou uma brisa, agitando o vestido de chita das mulheres e levantando redemoinhos na poeira do terreiro. Vi o vento balançando os altos eucaliptos plantados pelo tio César. Ao sinal do Coronel, um peão soltou a trava e o cata-vento girou de vagar, as pás assoviando no vento que subia do Sul. E, sem aviso, as lâmpadas da sala e cozinha piscaram uma, duas vezes e brilharam sua luz amarelada. Ouviram-se Oohs de surpresa das mulheres e gritos esganiçados da criançada, que ainda não sabiam como o vento mudaria a vida de todos nós.

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De volta ao ginásio, cercamos o menino Giulio Giampoli, tentando dizer alguma coisa, mas sem saber qual a coisa certa. O Irmão Regente chegou, dispersando os meninos e avisando que era hora de voltar para as salas de aula. Voltamos correndo e o professor mandou o Giulio sentar na primeira fila, perto dele. Ele ali ficou, calado por um longo tempo.

Ele, um dos mais animados e brincalhões da turma, nunca mais foi o mesmo. As chamas que destruíram a fábrica de balas mudaram para sempre a vida dos Giampoli que, pouco tempo depois, acabrunhados, voltaram para sua terra de origem.

O resto do ano transcorreu lentamente. O lugar de Giulio foi ocupado por um menino sardento, diziam que era de uma família de marinheiros e que sabia de estórias do mar. Seu nome era Leôncio, um garoto de pouco falar e muito ruim em aritmética. Logo ganhou o apelido de Foguinho.

E a cada dia, os jornais mostravam mais e mais cenas da guerra distante, que lentamente invadia nossa rotina diária. O pão racionado, o gasogênio fumegando nos carros e o rádio sintonizado nas estações de Buenos Aires, falando de mortes e de sofrimento . Vi as famílias de judeus da Felipe Camarão andando de cabeça baixa, indo ou voltando da sinagoga.

Para variar, no campo, não havia jornais e pouca gente ouvira falar da guerra. Agora tínhamos energia elétrica e água corrente, que expulsaram os mal-cheirosos lampiões e as baciões do banho das crianças para o fundo do galpão.

Mas, a um canto da sala, ainda restava um mistério a ser desvendado: eram umas duas ou três caixas com a marca "RCA Victor" estampada na madeira. Ali se guardava outra modernidade - um rádio de ondas curtas, um dos primeiros chegados ao Estado.

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O rádio receptor era parte do equipamento que viera com o cata-ventos, mas não havia quem o soubesse instalar e muito menos, como fazê-lo funcionar. Com a Europa em chamas e a ameaça dos submarinos alemães na costa brasileira, ninguém por ali estava disposto de saber de más notícias. Até que o avô deu a sentença - o tal rádio só seria instalado quando a guerra chegasse ao fim. E, por longos anos, as caixas de madeira permaneceram a um canto, cobertas por uma lona preta. Até que, finalmente, chegou o ano de 1945 

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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