História da criatura

Na minha sanha por abrir espaço nuns armários na biblioteca, topei com uma pasta com textos antigos, ainda escritos a máquina. Depois de uma checada rápida, botei tudo fora, menos o que transcrevo abaixo. Não é que me pareça bom. Trata-se de uma curiosidade. Quem era o garoto que o escreveu? Eu tinha uns 25 anos, no máximo, e achava que não Cristo, mas só o humor salvava. Quanto ao resto, nem Nero Wolfe seria capaz de descobrir. Talvez o texto lembre vagamente o modo como eu viria a escrever mais tarde, mas uma coisa me espanta: hoje eu jamais teria a ideia dele e se, por acaso tivesse, não teria ânimo de escrevê-lo.

PS: Confesso que cortei as piadas mais fracas e um advérbio, não por ser advérbio, mas porque não fazia falta.

Nasci no dia 13 de agosto. Pena, não foi numa sexta-feira. Mesmo assim a parteira deu azar: enfrentou quilômetros de neve, num cavalo velho, atormentada sem tréguas pela recordação de uma sopa de legumes que ficara sobre o fogão, e chegou atrasada: eu já tinha nascido e chorava mais que mocinha de novela mexicana. Pobre mulher: pensando de novo na sopa, felicitou minha mãe e se foi, envelhecida precocemente pelo mau hábito de fazer aniversários duas vezes por ano.

Na escola, só passava por média em bom comportamento. Como eu nunca conseguia escrever como os professores queriam, logo me dei conta de que meu negócio era a literatura. Pra azar dela e meu, eu estava certo, se estou certo: não presto pra mais nada. A família, aos poucos, se conformou, como esses senhores que se conformam com a calvície, mas não deixam de puxar os cabelos do lado por cima da cabeça. Evitamos falar em grana. Apenas, de ano em ano, alguém me pergunta se não aposto na loteria, ou se ainda não descobri um modo mais fácil de ganhar a vida, carregando pedra, por exemplo. Sempre nos demos bem, mesmo quando fui francamente escandaloso, ao anunciar que ia ser humorista ao crescer. Era um marmanjo deste tamanho e menos engraçado que o Dostoievski na Sibéria, mas a família ali, me incentivando: essa foi boa, conta outra!

Amargurado com o mundo - queriam que eu fosse jornalista -, me fechei no porão, no meu laboratório, pra fazer as experiências que separariam a luz das trevas e juntariam a seriedade ao humor. Foram anos de obsessão, estoicismo e cafezinho preto, sem açúcar. Mas por fim dei com a fórmula secreta. Por fim pude fazer a poção.

Numa noite de tempestade, a lua cheia escondida pelas nuvens velozes e negras como a asa da graúna do Henfil, comi dois pratos do mocotó e tomei a poção colorida, fumegante, com gosto de petróleo e de sovaco, como um italiano definiu o gosto da Coca-Cola. Pensei que fosse morrer: vi minha vida desfilar diante dos meus olhos, como uma escola de samba, com carros alegóricos e ala das baianas. Desmaiei sem entender de onde tinha saído tanto luxo.

Acordei como sou hoje. A carteira de identidade continua com a velha foto 3x4, com a velha digital, com o velho nome de ator de radionovela, mas eu sou um monstro de nariz vermelho, careca de pano, os olhos pintados em cruz. Aterrorizante, concordo, mas com uma ternura, uma meiguice ao contemplar as belezas do mundo - um espelho de corpo inteiro, por exemplo - que só não comove serial killers e banqueiros.

Minha vida é vagar minha maldição pela noite. Mas cuidado: o monstro que sou me dá prazer. Rio de tudo, desde gordas que caem na rua até de mim mesmo e do exército. Sim, do exército - abaixo do posto de sargento, mais ou menos, que meu heroísmo não é prevalecido.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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