Limpinhos e sujos de sangue

Me impressiona como nossa sociedade anda asséptica. Nos achamos os mais limpinhos, ou pelo menos lutamos para ser. As descobertas científicas recentes nos permitiram …

Me impressiona como nossa sociedade anda asséptica. Nos achamos os mais limpinhos, ou pelo menos lutamos para ser. As descobertas científicas recentes nos permitiram conhecer e ver coisas que nunca antes tínhamos consciência. Ou alguém aí, com mais de 30 anos, vai dizer que sua mãe falava em ácaros?
Outra descoberta fundamental foi de fato a necessidade da higiene. Os médicos não se cansam de dizer que o simples ato de lavar as mãos e os alimentos (hortifrutigranjeiros) já afasta uma grande parte de doenças.
Mas saber de microorganismos que habitam o nosso carpete, saber que a higiene é importante, também nos trouxe um outro efeito colateral, este nocivo. Começamos a nos tornar verdadeiros obsessivos por limpeza, assepsia e cuidados.
Numa crônica recente publicada em Zero Hora, que infelizmente não lembro se de autoria de Lya Luft ou Martha Medeiros (a autora que me perdoe), ela dizia que, no seu tempo, as mães, para combaterem os piolhos, colocavam um saco plástico na cabeça das crianças e enchiam de Neocid. E que nenhuma morreu ou ficou doida por causa disto. (Minha mãe fez isto também. Alguns dirão que é por isto que sou assim, mas posso afirmar que o motivo não é este.)
Ainda na crônica, a autora dizia que, se fosse hoje, ia ser um escândalo, iam levar a criança imediatamente para o hospital, exames, tomografia computadorizada. Claro que não defendo a volta do Neocid. Muito menos sou contra a evolução tecnológica e científica, muitíssimo pelo contrário. Mas nos tornamos obcecados com a idéia de limpeza.
Outro exemplo: os filmes de ficção cientítica de minha infância sempre retratavam um ambiente limpíssimo, roupas sem um fio fora do lugar. E por quê? Me ocorre uma idéia. A evolução foi associada à idéia de limpeza. A terra, a natureza, ficaram vinculadas a atraso e sujeira. Pois é. Agora somos limpos, evoluídos. Conseguimos debelar o selvagem que vivia dentro (e fora, muitos anos atrás) de cada um de nós. Chegamos ao futuro.
Chegamos ao futuro limpinhos e com as mãos sujas de sangue. Das milhares de mortes do atentado de 11 de setembro, da Guerra do Iraque, do atentado de ontem em Madrid. A síntese é clara: por mais que esterilizemos tudo no mundo, volta e meia emerge a besta-fera que vive em cada um de nós, os ácaros que vivem em nossa alma se manifestam, como aliens em busca de alimento. Claro que terroristas são bestas-fera integralmente e que nós, pessoas comuns, não sairemos por aí matando pessoas (embora muitas vezes seja nosso desejo, freado pelo superego e pela civilização. Quem já não disse inúmeras vezes: "Tenho vontade de matar o fulano?").
Mas por que esta verdadeira obsessão em negarmos de forma peremptória nossa condição humana? De que temos, sim, desejos, raiva, medo, alegria? Por mais que tenhamos nos transformado em seres equilibrados, racionais e limpinhos, acabamos (nós, civilização) delegando poder às bestas-feras: nos EUA, elegendo um presidente belicista; no Brasil, achando que conseguiremos nos proteger blindando carros, erguendo muros, eletrificando muros, tendo cães de guarda, guarda-costas.
Nada, nem o mais potente Sterilair consegue esterilizar nossas almas de nossos instintos primitivos. Ainda bem, pois isto é o que nos faz humanos. Talvez se, somente em matéria de sentimentos e não de ciência, fôssemos mais primitivos e menos limpinhos, vivêssemos em um mundo melhor.
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