Magia portátil

Por José Antônio Moraes de Oliveira

"Deveríamos nos cercar com mais livros

que jamais teremos tempo de ler."

Umberto Eco.

Meu professor de português no ginásio tinha uma paciência infindável. Mês a mês, tentava enfiar em nossas teimosas cabeças que não existe nada melhor do que a literatura para entender a vida e o mundo ao nosso redor. Dizia e repetia que não existem livros fáceis nem livros difíceis. O que existe, sim - são leitores compenetrados e leitores do tipo 'eu-não-quero-saber'. Enquanto ele se estendia sobre as virtudes dos clássicos, eu espichava o olho para o céu sem nuvens de Porto Alegre, pensando no próximo feriado e nos gibis que me aguardavam debaixo da cama.

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Muitos anos depois, o simples gesto de abrir um livro, me trazia de volta a fé do velho professor. E sempre me ocorria um pensamento de gratidão pelos prazeres de saborear um Machado de Assis ou um Eça de Queiroz.

Ou até mesmo quando emperrava diante do desafio de Guimarães Rosa ou Tomás de Aquino. Mas voltava a voz distante que apregoava que os livros difíceis serão aqueles que mais tempo permanecerão conosco. E, na medida em que cresce nossa intimidade com poetas e escritores, chega a consciência que nunca conseguiremos ficar longe de um livro.

A jornada de descobrimento de novos ou antigos autores nunca cessa para os amantes da tinta e do papel. Um indecifrável 'Finnegans Wake' de 20 anos atrás tem o prazer de recompensa, depois da terceira ou quarta tentativa. As 300 ou 400 páginas de Herman Melville que nos aguardam na estante escondem aventuras de não mais se esquecer. Um velho amigo, devorador de textos teatrais afirmava ser impossível conhecer Shakespeare sem antes decifrar os mistérios de 'Macbeth'. Mas que antes de 'Macbeth', era preciso entender 'Hamlet'.

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Os grandes textos demoram a se entregar ao leitor viciado no livro fácil. Na feira do livro ou nas vitrinas das livrarias, o best-seller nos seduz com texto escorreito, enredo palatável e personagens cativantes. Seus mistérios se resolvem ao folhar das páginas e o final replicará o das novelas da TV. O campeão de vendas sempre oferece um caminho pontilhado por árvores de sombra e bancos para o leitor descansar.

Enquanto isto, no mais alto da estante, grossos volumes, longos capítulos, ideias, filosofia, personagens herméticos - obstáculos no enfrentamento às grandes obras.

Os clássicos têm sido lidos e relidos ao longo dos últimos 500 anos, bem antes de sermos apresentados ao alfabeto. E continuarão sendo lidos e relidos nos próximos 1000 anos. Enquanto o best-seller apela por nossa leitura, o clássico dá de ombros:

"- Não tenho a menor necessidade de chamar sua atenção."

Os céticos lançam dúvidas - por que escolher a estrada não pavimentada, fustigada pelo sol inclemente? Por que escolher a dificuldade em lugar da facilidade? Quem escalaria ao tronco liso da palmeira atrás do coco se é possível ter o mesmo coco já aberto, gelado e com canudinho, servido à mesa?

Que impulsos movem o leitor de obras difíceis?

Mal comparando, são os mesmos impulsos que, na academia de ginástica, nos levam aos halteres de maior peso. Todos nós sabemos que os pesos leves não exigem esforço - e sem estímulo, os músculos não se fortalecem.

Sem o trauma, as fibras não se transformam. Não cansamos, não saímos da nossa zona de conforto. Crescimento é resultado do desafio. O grande mérito do livro clássico reside justamente em suas dificuldades. Nosso vocabulário cresce, a mente se expande, a musculatura intelectual se estimula diante do desafio.

Claro que um best-seller pode ser boa literatura. Um romancista como Dan Brown vendeu milhões de exemplares explorando um só tema e um único personagem. São hábeis tramas detetivescas, fundamentadas em demoradas pesquisas em Arte e História. Divertem, prendem a atenção e divulgam temas pouco acessíveis à média dos leitores.

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Já a obra clássica vai além - discute nosso lugar no mundo, desafia limites e propõe a revisão de ideias preconcebidas. Mas precisa ser bem lida para ser bem assimilada. Se diz que pessoas com certezas absolutas nunca devem ter lido Dostoievski. E que o pessimista que diz "o mundo está perdido", provavelmente desconheça a 'A Comédia Humana', de Balzac. Ou quase com certeza, 'Coração das Trevas', de Joseph Conrad.

Muito disso e ainda mais poderia ser sintetizado na simples e cristalina frase que o mestre Umberto Eco cunhou sobre o tema:

"O livro é uma magia portátil."

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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