Não acredite em tudo que a mídia diz

As pessoas de esquerda, em seus discursos, já identificaram um dos seus maiores inimigos, a grande mídia.

Citada, às vezes, assim genericamente, outras identificadas pelos seus nomes de batismo - Rede Globo, Revista Veja, Folha, Estadão, RBS - outras vezes apresentada de forma irônica - o PIG - Partido da Imprensa Golpista - a insistência no caso parece dar a impressão de que essas pessoas ficaram deslumbradas com sua descoberta.

Não que essas pessoas estejam erradas. O inusitado é que parece que só agora estão se dando conta disso.

Na sociedade em que vivemos hoje, a grande mídia (vamos tratá-la aqui dessa maneira) é o sustentáculo do sistema capitalista e tem tanta força, que há muito ele abriu mão de outras formas de preservação.

O sistema capitalista, mesmo injusto na sua essência, prescinde da religião, da escola, da polícia e das forças armadas para se impor à sociedade moderna. Bastam os canais de televisão, as revistas, os jornais e a até mesmo a chamada mídia social que, por incrível que pareça, reproduz nos discursos isolados dos internautas o que foi pautado pela grande mídia.

Isso existe há muito tempo, mas se tornou mais claro após a Segunda Guerra, quando, depois de 500 anos de um domínio indiscutível, o sistema capitalista viu surgir um adversário poderoso: o sistema socialista, representado pela União Soviética.

Pela necessidade de derrotar uma forma extremada de capitalismo - o nazismo - os países capitalistas do ocidente - basicamente os Estados Unidos e a Inglaterra - precisaram fazer uma aliança com uma força totalmente oposta ao seu projeto econômico e social, a União Soviética.

Durante todos os anos da guerra, sempre ficou clara a estratégia ocidental - apostar no desgaste mútuo dos comunistas e nazistas - para se preservar. O pacto de Munique, visando a direcionar as ambições de Hitler para o Leste e, depois, durante a guerra, os constantes adiamentos na abertura da segunda frente na Europa, fazia parte dessa estratégia.

A força do Exército Vermelho, que derrotou praticamente sozinho a Wehrmacht, mudou esse quadro. Junto com a vitória militar, veio uma inesperada simpatia em todo o Ocidente pelo sistema socialista vigente na União Soviética.

Mais do que o nazismo, essa nova ameaça tinha uma força de convencimento imensa, porque era internacionalista e tinha um profundo cunho humanista, ao recuperar a velha e esquecida, no Ocidente, proposta de igualdade social.

Era preciso urgentemente destruir essa ideia, agora não mais com armas, mas com outra ideia, totalmente oposta. A partir de 1947, durante o governo de Eisenhower, o general endeusado como o comandante do Dia D, iniciou-se a maior campanha de mídia de toda a história para vender ao mundo inteiro que estavam em disputa duas propostas distintas de organização social, a 'democracia', representada pelos Estados Unidos e a 'ditadura', representada pelos países que formavam o que Churchill chamou de Cortina de Ferro e que a proposta melhor para todos era a da 'democracia'.

Não importava que os Estados Unidos que representava o lado democrático, eram um país dividido por um arraigado preconceito racial e que o 'american way of life', mostrado para o mundo inteiro como um modelo a ser seguido, era exclusivo de uma elite branca.

A campanha usou principalmente o cinema como ponta de lança dessa campanha, mas incluiu, também, todo o tipo de atividades culturais, mesmo aquelas restritas a um público mais seletivo.

Um exemplo disso foi o súbito prestígio do pintor de arte abstrata Jackson Pollock, transformado, para seu próprio espanto, numa celebridade internacional com seus quadros expostos no mundo inteiro, quando era ainda há pouco quase um desconhecido no seu próprio país.

Acontece que a USIA (United States Information Agency), o serviço de divulgação do governo norte-americano, havia percebido que a pintura abstrata poderia ser mostrada como uma forma de liberdade em oposição ao figurativismo dos artistas soviéticos, que seguiam a chamada arte socialista e tratou de promover Pollock.

A USIA foi criada em 1948, mas se tornou ativa a partir de 1953 e tinha, entre seus objetivos, propagar o modelo de vida norte-americano; organizar a captação, produção e distribuição de produtos como revistas, boletins, bibliotecas, exposições, documentários; além de estabelecer o intercâmbio de estudantes e professores nos Estados Unidos e o treinamento de professores de Inglês.

Um dos seus veículos mais conhecidos foi a emissora de rádio a Voz da América.

A USIA foi extinta em 1999, possivelmente porque o governo norte-americano tivesse se dado conta de que o sistema funcionaria sozinho nos países do Ocidente.

A coerção militar passou a ser usada desde então apenas em casos extremos e os norte-americanos sempre a usaram com a desculpa de defender a democracia ameaçada, tendo o cuidado de fazê-lo, quase sempre, com a proteção de entidades internacionais, onde tinham a maioria de votos ou o poder de decisão.

Foi assim na Guerra da Coréia, em 1950, feita sob a bandeira da ONU; a invasão da República Dominicana, em 1965, com o disfarce da OEA e os ataques à antiga Iugoslávia, em 1999 e na Líbia, em 2011, mostrados como uma ação da OTAN. Mesmo no caso do Iraque, em 2003, não eram apenas os Estados Unidos os agressores. Havia uma coligação com a Inglaterra para dar um conteúdo internacional a essa agressão.

Nos outros casos, onde havia a necessidade de 'recuperar a democracia ameaçada', recorria-se aos aliados internos, caso dos golpes militares nos países latinos - especialmente Brasil e Chile - e nas intervenções nos negócios internos de outros países, como a deposição do premier Mohamed Mossadegh, em 1953, que havia nacionalizado o petróleo no Irã, para instaurar uma ditadura sangrenta como foi a do Xá Reza Pahleve.

Com o advento de novas técnicas de comunicação, principalmente a televisão e, mais tarde, a internet, o processo de coerção através da mídia e não mais da força militar, se tornou dominante e, a partir de determinado momento, prescindiu de um controle externo.

Em todo o mundo ocidental foram criadas elites de barões da mídia que introjetaram esses valores ditos democráticos e, em cada um dos seus países, trataram de promovê-los e defendê-los contra as velhas ideias socialistas de solidariedade humana e justiça social.

E parecem ser cada vez mais eficazes nesse trabalho.

Basta ver como eles operam. Qualquer exemplo serve, mas como está mais perto de nós, podemos pensar no grupo RBS que, casualmente, se constituiu e fortaleceu após o golpe de 1964 e na ditadura militar que se seguiu.

Umbilicalmente ligado à Rede Globo, o grupo repete aqui o mesmo modelo atual da mídia brasileira. É aparentemente imparcial na sua linha editorial, reservando para seus jornalistas, colunistas e repórteres, a tarefa de desconstruir as propostas alternativas de governo, no caso especificamente a do PT.

Este modelo, aparentemente imparcial, que toda a grande mídia segue, exceção da revista Veja, sempre numa linha agressiva, só é quebrado em ocasiões especiais, quando percebe que o modelo neoliberal que defende, pode estar ameaçado. No plano nacional isso ficou muito evidente em algumas ocasiões, como na campanha pelas Diretas Já, na eleição de Collor contra Lula e no impeachment de Dilma.

A RBS (ligada a uma família como é também os casos da Globo, Veja, Estadão e Folha) reproduz, em nível regional, essa mesma linha de ação. Seus veículos seguem uma linha editorial que reflete a nova onda neoliberal, com a defesa da iniciativa privada em oposição à intervenção do Estado nas áreas econômicas e sociais; com a exaltação dos exemplos de empreendedorismo e com a valorização de um comportamento ético nas relações políticas, embora tenha tido o dissabor de ver seu nome ligado a uma investigação sobre corrupção na chamada Operação Zelotes.

Poucas vezes a RBS fugiu desse modelo e quando o fez, foi para seguir o padrão nacional estabelecido pelos grandes veículos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Talvez a única exceção, exclusivamente regional, tenha sido durante o governo de Olívio Dutra, quando batalhou diariamente pela sua desconstrução, com suas manchetes alarmistas sobre um discutível crescimento da insegurança publica e seu apoio a uma CPI na Assembleia que deveria investigar o jogo do bicho, pretensamente tolerado pelo Governo Estadual.

No restante, são seus jornalistas encarregados de tentar convencer os leitores, ouvintes e telespectadores de que o PT é uma organização criminosa, que não houve golpe contra Dilma e que a Venezuela é uma ditadura, apesar de todos seus dirigentes terem sido eleitos em pleitos democráticos.

E, ao que parece, tem sido muito competente em sua tarefa, haja vista que nas últimas eleições os candidatos que apoiou direta ou indiretamente, foram os grandes vencedores, sem contar que continua seguindo a tradição de ver muitos de seus funcionários mais famosos se transformarem em deputados e senadores para defender nos parlamentos sua ideologia política.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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