O machismo vive, sobrevive e renasce todos os dias

Por Márcia Martins

Como mulher, mãe de outra mulher, feminista, jornalista, defensora dos direitos humanos e, principalmente, que acompanha, como profissional de mídia e fã de futebol, a pouca isenção da imprensa esportiva quando elege seus ídolos, não poderia furtar-me a comentar o caso do boletim de ocorrência do suposto estupro cometido pelo jogador Neymar. Então, antes de escrever mais sobre o fato, que teria acontecido no dia 15 de maio, quando assessores do jogador pagaram as despesas para uma moça brasileira encontrar-se com Neymar, em Paris, já aviso: não gosto dele, acho que demonstra caráter duvidoso, coloca-se sempre acima do bem e do mal, tem comportamentos lamentáveis dentro e fora de campo e sexo sem consentimento é estupro.

O que tem me irritado bastante é a velha tática, sempre que a denunciante de algum crime sexual é mulher, de transformar a vítima em culpada. Temos Lei Maria da Penha, tivemos presidentas da República, conquistamos mais espaços de poder (ainda precisamos aumentar nossa participação na política), lutamos pela paridade nas diretorias sindicais, conseguimos que os companheiros/esposos/noivos/namoridos dividam mais as tarefas domésticas e entendam que a prole é sempre de dois e nunca responsabilidade só feminina. Mas ainda escutamos, e, às vezes, em rodas femininas, para meu espanto, que a mulher provocou o assédio, que ela usava roupa decotada, que o comprimento da saia era curto, que ela facilitou, que isto e aquilo.

Se, em pleno ano de 2019, algumas pessoas, inclusive mulheres, pensam exatamente com a cabeça de um estuprador, é porque precisamos ainda falar sobre assédio moral e sexual contra as mulheres. Sobre violência sexual, sobre desrespeito, sobre preconceito, sobre estupro, sobre feminicídio. É necessário debater em todas as instâncias que a roupa não é motivo, que o envio de nudes não é sinal de sim, que conversas eróticas não são o passaporte para os atos sexuais. Porque, infelizmente, apesar de todas as lutas, todas as conquistas, todos os avanços, ainda existe um longo e tortuoso caminho a ser trilhado, uma vez que o machismo vive, sobrevive e renasce todos os dias.

É urgente que todos e todas entendam regras básicas sobre sexo. Por exemplo, se uma mulher foi em determinado local, nem que seja no outro lado do mundo, com a intenção de transar com um homem, mas na hora ela disse "não" e ele não parou, é estupro. Não interessa se foi com as despesas pagas pelo homem. Se mandou mensagens eróticas pelo WhatsApp. Não é não. Se uma mulher e um homem são namorados e na hora do sexo, ela diz "não" e ele não para, é estupro. Não é não. Se uma mulher e um homem são casados, e na hora da transa, ele fala "não", mesmo que tenha até aceito as preliminares, e o marido não para, é estupro. Não e não. Se a mulher diz "não", ela está querendo exatamente dizer "não". E sexo sem consentimento é estupro.

Não há dúvida de que a história parece realmente mal contada, que a notícia carece de exatidão, que existem dos dois lados - pelo que foi divulgado oficialmente - inconsistências nas versões de Neymar e da mulher. Entretanto, no reino dos homens poderosos, da sociedade patriarcal, este caso do jogador mais uma vez, como em tantas outras situações, ressalta o poder do macho milionário que pode escolher a mulher que quer na rede social ou outras alternativas, pagar passagem aérea, estadia em hotel cinco estrelas em Paris e depois, aparecer de vítima. Posar de bom moço. Fazer cara de ultrajado. Dar entrevista se dizendo enganado. Porque, afinal, pagou pela mercadoria. Não importa se tal mercadoria é uma mulher.

Se o jogador, com o propósito de provar a sua inocência, publicou nas suas redes sociais um vídeo com mais de oito minutos contendo fotos sensuais da mulher e revelando diálogos entre eles, cometendo crime de internet, isto passa a ser secundário. Até porque o pai do Neymar informou que "prefere crime de internet a estupro", como se fosse permitido a um infrator escolher por qual tipo de crime ele deve ser julgado ou escolhe cometer. Se Neymar tem mais de 119 milhões de seguidores nas redes sociais, e entre estes, inúmeras crianças, que tiveram acesso a este vídeo, isto passa a ser secundário. Segundo escreveu a antropóloga Debora Diniz, "não sabemos a verdade do estupro, mas da crueldade com que Neymar expôs a mulher".

Quanto à imprensa esportiva, é impressionante a rapidez que ela tem em proteger um jogador escolhido para ser ídolo, apesar de estar envolvido em sonegação de impostos, praticar atitudes bem desleais durante partidas de futebol e cuspir na cara de torcedores fora do campo. A imprensa esportiva já selecionou alguns parceiros de Neymar na Seleção para mostrar que eles estão apoiando o jogador e que são incansáveis na sua defesa. A imprensa esportiva jogou no lixo todos os ensinamentos do jornalismo que orientam sempre ouvir os dois lados, de ser imparcial, de não fazer julgamentos, de evitar tomar partido e já sentenciou: Neymar é a vítima. Logo ele, de índole duvidosa, sonegador, mau exemplo dentro e fora de campo, desleal com os adversários, agressor de torcedores fora do campo. Neymar é a vítima. Só que não.

Lá no início desta coluna (que ficou enorme, perdão leitores e leitoras), antecipei que não gosto do Neymar. Para mim, ele nunca foi um herói. Claro que reconheço nele um talento extraordinário para o futebol, mas só quando ele está com vontade. E isto não tem sido tão comum. Também não é mais um menino. Parem, pelo amor de Deus, de escrever o "menino Neymar". Meninos não sonegam impostos, não têm a hipocrisia de fazer cara de paisagem ou de bobalhão quando lhes convém. Meninos, desde que não sejam mimados, entendem perfeitamente o que significa não. Neymar ainda não tem ou finge não ter, quando a situação lhe favorece, compreensão de que "não é não".

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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