O novo cinema gaúcho caminha a passos largos

A Mostra Internacional de Cinema em São Paulo é uma das minhas Disneylândias nacionais - a outra é o Instituto Inhotim, em Minas Gerais. Fico faceiro que nem pinto no lixo mergulhado no aluvião de filmes de países como Suíça, Egito, França, Alemanha, Geórgia, Itália, Bolívia, Finlândia, Irã, Argentina, Irlanda, Coreia do Sul, Estônia, Islândia, Chile, Suécia... Na 41ª edição do festival, que se encerrou nesta quarta-feira, vi quase 50 longas em 12 dias. Havia também títulos brasileiros, claro: neste ano, a mostra exibiu 64 novas produções - dentre elas, quatro gaúchas. Acompanho a maratona cinemeira paulistana há vários anos e não me recordo de uma participação sulista tão expressiva, tanto do ponto de vista numérico quanto qualitativo. A representação do Rio Grande do Sul contou com o documentário 'A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro', 'Bio' - melhor filme brasileiro pelo júri popular no Festival de Gramado -, 'Música para Quando as Luzes se Apagam' e 'Yonlu'. Os dois últimos foram dirigidos por estreantes em longa-metragem - e compartilham entre si muito mais do que apenas o lugar de onde provêm.

Tanto 'Música para Quando as Luzes se Apagam' quanto 'Yonlu' apresentam em narrativas não convencionais as histórias de adolescentes em desacordo com os padrões convencionais da sociedade, em pleno processo de exploração de sua sexualidade e que cultivam um universo de referências culturais e de valores rico e independente do mundo dos adultos. Exibido no Festival de Brasília, 'Música...' utiliza quase todo o tempo um formato de imagem mais quadrado, semelhante ao das gravações em celular e filmagens caseiras, para registrar o cotidiano de Emelyn Fischer, menina de Lajeado que se veste como garoto. A jovem hospeda em sua casa a personagem de Júlia Lemmertz, espécie de alter ego do diretor Ismael Caneppele, mulher que passa a conviver com a família de Emelyn e registrar em vídeo as confidências da adorável guria e seus encontros com os amigos e a namorada.

Caneppele volta ao ambiente das cidades do interior, já abordado em 'Os Famosos e os Duendes da Morte' (2009) - filme dirigido por Esmir Filho baseado em seu romance homônimo -, em que a juventude é confrontada com uma realidade paradoxal: por um lado, as amplas paisagens abertas convidam à exploração constante; por outro, a estreiteza de horizontes existenciais arrasta para a estagnação. Borrando os limites de gênero entre documentário, ficção e ensaio poético, 'Música...' é um filme trans como sua protagonista.

Já 'Yonlu' ocupa toda a extensão da tela no formato estendido para mostrar Porto Alegre e os cenários íntimos por onde circula o personagem-título. Para construir o roteiro, o diretor Hique Montanari baseou-se em músicas, ilustrações e textos deixados por Vinicius Gageiro Marques, estudante que se matou em 2006 aos 16 anos com o auxílio de internautas participantes de um fórum sobre suicídio. Costurando trechos de relatos deixados por Yoñlu - nome artístico adotado por Vinicius -, canções e animações produzidas a partir de desenhos feitos pelo protagonista, o filme esboça um retrato emocionante, ainda que lacunar, do sensível e talentoso adolescente que sucumbiu à melancolia e à depressão. Da mesma forma que o espectador, tanto os pais (interpretados por Liane Venturella e Leonardo Machado) quanto o psicanalista vivido pelo ator Nelson Diniz não conseguem decifrar totalmente o enigma Yoñlu (Thalles Cabral), que apela para a internet a fim de buscar informações que o ajudem em seu intento trágico - a maneira fantasmagórica e teatral como o filme encena os diálogos do garoto com os anônimos interlocutores virtuais, aliás, é um dos acertos da produção.

Ao lado de 'Bio', de Carlos Gerbase, e 'A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro', de Leo Garcia e Zeca Brito, ambos longas igualmente inventivos, 'Música para Quando as Luzes se Apagam' e 'Yonlu' atestam que a produção cinematográfica gaúcha vem enfim caminhando com firmeza nos últimos anos rumo à maturidade. Que o passo continue firme nesse ritmo.

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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