O pica-pau amarelo e o cerco do Bananão

Eu nunca tinha visto um pica-pau com o topete todo amarelo, um topete moicano considerável e daquele amarelo meio enfumaçado do rabo-de-palha. Fiquei de olho por um tempo: surpresa e encanto - tradução: ainda bem que não vi tudo. Então lembrei da minha infância, quando a descoberta de um passarinho novo era motivo de comemoração, era quase um traço essencial no mapa do mundo e na minha tentativa de me localizar nele.

Por que não falar disso e deixar pra lá, por ora, o que tem ocupado meus dias, os sinhozinhos e capatazes que comandam o Bananão? Se o Rubem Braga podia se dedicar aos sabiás a ponto de ser identificado com o bicho, por que eu não podia cantar o pica-pau amarelo? Os tempos do Braga não foram menos conturbados que o nosso. Talvez um pouco menos canalha, mas e daí? As almas caridosas poderiam relevar minha falta de talento como cronista.

Eu, como milhares antes de mim, disse e repeti muitas vezes que não se pode pautar um escritor. Um escritor de verdade não anda atrás dos temas, são os temas que o perseguem. Tem mais: os temas variam conforme os dias ou as estações - pode ser uma borboleta ou o rebolado da vizinha e não as injustiças do mundo. O escritor não tem que se sentir culpado por isso. Se você consegue ver mais longe que dois palmos da ponta do nariz, topa com uma vertigem, um jogo de armar em que você pode montar milhares de brinquedos diferentes com as mesmas peças. É de dar calafrios. O mundo é tão maluco que até otimismo cabe nele.

Qual é então o problema? O problema é que não sei falar de passarinho. Ou sei de um modo tão tosco que ofenderia o Braga.

Não tenho prazer nenhum em escrever sobre o Bananão. Nem escrevo por dever patriótico. Cada passarinho novo era um novo traço no mapa do mundo quando eu era menino e cada novo traço me dava a sensação de estar menos perdido. Cada novo sinal de apodrecimento do Bananão que anoto completa o mapa da minha perdição. Anoto como quem faz exames médicos sobre o avanço de uma doença incurável. Não quero me enganar. Quero saber direitinho onde vai doer e quanto vai doer.

Mas veja abaixo o pica-pau. Não é bonitinho?

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

Comentários