O presente perfeito que ganhei há 23 anos

Há 23 anos eu produzi a minha melhor reportagem. Há 23 anos eu escrevi a minha mais completa e investigativa matéria. Há 23 anos eu juntei rimas perfeitas e imperfeitas e elaborei o poema mais belo, profundo e controverso da minha vida de poeta. Há 23 anos eu reproduzi, em outro ser, as minhas qualidades mais valorizadas e também alguns dos meus defeitos odiosos. Há 23 anos eu pintei o quadro mais esteticamente renascentista que iluminaria a minha rotina, uma pintura para ser tocada, admirada, respeitada, grandiosa e admirável. Há 23 anos, sem a menor sombra de dúvida, nascia a minha obra-prima, o trabalho mais significativo, pleno e que se tornou vital para alimentar os meus dias com as doses necessárias de carinho, justiça, responsabilidade e amor.

No início de uma noite quente de um dezembro que se tornaria inesquecível para mim, na maternidade do hospital Mãe de Deus, abandonava a minha barriga, que fora a sua moradia segura durante 40 semanas, a filha que eu tanto planejei, almejei, sonhei e imaginei. Nem nos meus futuros momentos de esquecimento, que um dia irão de me invadir com a idade que não poupa ninguém, eu deixarei de lembrar aquela terça-feira, no instante em que me fixei naquele olhar sincero e percebi que uma nova fase da minha vida começava ali a ser escrita e que tudo o que vivera até ali seria pequeno perto da nova experiência que se seguiria.

Um pequeno ser, cheio de cabelos escuros na minúscula cabeça, com 51 centímetros e 3,760 quilos e apgar 10 (teste que avalia cinco sinais vitais do recém-nascido no primeiro minuto), mudaria para sempre o sentido da minha existência, dividindo a minha história em AG (Antes de Gabriela) e DG (Depois de Gabriela). Desde que a minha pequena nasceu, eu percebi que algo novo e mágico passaria a enfeitar os meus dias. Desde que a minha filha entrou na minha vida, de forma arrebatadora e definitiva, eu entendi que era necessário desenvolver um grau diferente de responsabilidade. Afinal, existia agora um projeto de gente que dependia de mim, das minhas escolhas, das minhas decisões, das minhas alternativas, da minha caminhada.

Na fase DG que passei a viver a partir das 19h29 do dia 6 de dezembro de 1994, o mundo ficou mais colorido, mais animado, mais interessante, mais equilibrado. Na fase DG, eu vivi os momentos mais emocionantes que jamais pensei que poderia ter experimentado antes de Gabriela. Impossível não recordar do meu pequeno bebê engatinhando no chão da sala do apartamento da rua Fernando Machado. Inviável não lembrar quando ela pronunciou, pela primeira vez, a palavra mamãe. Indescritível a magia com o primeiro dente caído, com as peripécias na creche, com a formatura e o discurso da Gabriela, oradora escolhida, escrito pela menina de seis anos.

Não é possível esquecer as confidências trocadas com as primeiras amigas da escola, as emoções com as apresentações de balé, com a desenvoltura nas apresentações de teatro, os passeios à sede campestre da escola, as aventuras vividas nos períodos em que ficava na colônia de férias em janeiro e fevereiro. Complicado não sentir orgulho de uma filha que sempre teve notas excelentes no colégio, que passou de primeira no vestibular da Ufrgs, que sempre se mostrou responsável e uma defensora incansável dos fracos e oprimidos. Embaraço não comentar que a minha filha tornou-se uma grande amiga minha, companheira, parceira dos bons e dos maus momentos. Seria egoísmo não dividir com vocês que eduquei uma filha preocupada com as injustiças, com as desigualdades sociais, com a discriminação, com o preconceito, com a indiferença que cega os olhos de muitas pessoas.

Neste 6 de dezembro de 2017 eu só tenho a agradecer algum ser superior que eu ainda não sei exatamente que nome tem, que expressão demonstra, a que religião, crença ou dogma pertence, pelo presente que colocou na minha vida há 23 anos. Nesta quarta-feira, eu só posso afirmar que, apesar de nem sempre toda a minha programação sair do jeito que eu imaginava ser melhor, vivi, ao lado desta pessoa maravilhosa que é a minha filha, as horas mais felizes, os dias mais intensos, as noites mais tranquilas e nervosas (quando ela demora para voltar das baladas), a etapa mais linda e lúdica deste meus 50 e muitos anos.

Há 23 anos (e nove meses, se contar o tempo da gestação), eu coloquei parte do meu coração a bater e pulsar de forma independente no coração de outra pessoa. E este é o mistério da vida. Renascer, redescobrir-se, reinventar-se e se ver em sensações, sentimentos, emoções, atitudes através do ser gerado no nosso ventre e que é entregue, adulto ao mundo, para perpetuar uma semente da família. Obrigada, Gabriela Martins Trezzi, por ter me escolhido para ser a tua mãe.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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