O sorriso da senhora Moro

Não, nada a ver com o da Monalisa. Mas os dois são misteriosos.

Muito se especulou sobre o sorriso da Monalisa. Uma das ideias mais populares é a de que Da Vinci fez um autorretrato disfarçado e o sorriso nada mais era do que a satisfação de enganar tantos trouxas por séculos afora. Seria maravilhoso se fosse verdade. Pelo menos pra mim, que tenho uma pinimba com a solenidade envolvendo a arte.

Por muito tempo pensei que o sorriso da Monalisa não queria dizer nada, que é o sorriso que todo mundo dá pro retratista ou pro fotógrafo, que os críticos simplesmente ficaram fantasiando, como muitas vezes, em busca de sacadas que mostrassem como eram inteligentes. Mas um dia me pareceu que eu conhecia aquele sorriso - era o sorriso que vi em muitas grávidas. Há uma serenidade, uma satisfação - a mocinha parece ter decifrado o segredo do universo ou a total insignificância do segredo do universo diante do que estava acontecendo com ela. Sei, não soa muito inteligente e sim piegas. Paciência.

O sorriso da senhora Moro no começo não parece misterioso. Dá pra apostar que ela tenta, com a ponta da língua, tirar um fiapo de carne ou manga preso entre os dentes. Mas ela teria ido assistir ao filme em que o maridinho é representado por um galã global sem escovar os dentes? Mais, ela tinha tapete vermelho à sua espera no cinema. Deve ter até tomado banho.

O certo é que, para além da contração grotesca, se percebe um vago desânimo no sorriso - ou tons do amarelo que o colore. Compare com o sorriso do Moro e da loira ao fundo. São escancarados, sem reservas - são os sorrisos dos heróis do Jornal Nacional: literalmente, óia nóis na fita. Então? Então parece que a senhora Moro não entendeu a piada mas não quer ficar atrás. Ou, por uma fração de segundo, cruzou sua mente a sombra da lembrança do pagamento que recebeu do doleiro Tacla?

Sim, a senhora Moro deu azar: foi fotografada no pior momento. Espero, no que me resta de caridade, que ela não tenha outros piores que esse. Mas não posso deixar de pensar em justiça poética: ou a senhora Moro não anda assanhada com a celebridade? Não foi até capa de revista, quando não tem absolutamente nada a declarar? Nada a declarar fora, claro, por que recebeu grana de doleiro.

Bom, o que me interessa na foto da senhora Moro é a expressão.

Se vi ou inventei em muitas grávidas a expressão que Da Vinci flagrou na Monalisa, pressenti na senhora Moro a expressão que outros pintores flagraram em outras figuras. Falo do Hieronymus Bosch, do Brueghel e do Goya, artistas por quem tenho uma quedinha. Mas falta na senhora Moro o peso dramático que vemos nos acompanhantes de Cristo carregando a cruz em Bosch, ou a alegria feroz de tantos camponeses em Brueghel, ou a deformação sinistra - porque parece mais moral que física - de velhas e velhos em Los caprichos de Goya. Vejo no sorriso da senhora Moro aquele não sei quê que identifica o Bananão - coisa que não me  tranquiliza.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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