O vidente

Havia apenas um letreiro meio desbotado na fachada, Bar do Manoel.

Uma verdadeira espelunca, mas era exatamente o que eu estava esperando.

Prudentemente, havia deixado o carro estacionado a uma quadra adiante e acabara caminhando pela Rua Piauí, no Passo da Areia, até chegar à frente do bar.

Como eu imaginara, naquela hora da manhã o bar estava ainda vazio.

Atrás do balcão, com cara de poucos amigos, estava aquele que deveria ser o Manoel, que dava o nome ao bar. Um homem gordo, aparentando uns 50 anos, quase careca e com um enorme bigode, o típico português das piadas. Além dele, apenas um empregado, que com uma vassoura, tratava de empurrar pedaços de papel e tocos de cigarro para a soleira da porta.

Eu já tinha vivido situações parecidas e sabia quais os problemas que haveria de enfrentar, mas o que fazer, teria que ir em frente.

Dei um bom dia e recebi de volta um resmungo.

 - Seu Manoel, preciso saber se o senhor recebeu uma encomenda, um engradado de bebidas finas, champanha, vinhos, uísques, conhaques.

Com uma visível irritação, o seu Manoel, em vez de responder, fez-me outra pergunta.

- O que o senhor quer saber? É vendedor de bebidas? Então, não estou interessado. A bebida que mais vendo aqui é cachaça.

Usando a melhor diplomacia possível, tentei informar ao seu Manoel que recebera um aviso que essa encomenda tinha sido entregue no seu bar e precisava apenas saber se ele a recebera.

O seu Manoel parecia agora à beira de um ataque de fúria.

- Não tem nada de encomenda e o melhor é o senhor não brincar comigo.

Pus uma nota de 50 reais sobre o balcão e pedi uma dose de cachaça, logo eu que nunca bebia cachaça, mas achei que isso acalmaria o homem.

Realmente, parece ter funcionado um pouco. Seu Manoel serviu a cachaça num pequeno copo, jogou o dinheiro na gaveta e dela retirou umas moedas de troco.

- Não se preocupe, seu Manoel, pode ficar com o troco. É uma paga pelo incômodo.

O clima ficou, então, bem melhor e ele quis saber por que eu estava interessado numa encomenda que disse que não tinha chegado.

- É difícil de explicar, mas o senhor me faria um grande favor se verificasse se não tinha mesmo chegado a encomenda.

O empregado que varria o chão parou um momento e entrou na conversa

- Seu Manoel, chegou um engradado de bebidas esta manhã e eu pensei que o senhor tinha encomendado. Está naquele canto, embaixo do balcão.

- Quem trouxe?

- Ninguém trouxe - quer dizer - quando cheguei para abrir o bar, estava do lado de fora, encostado na porta, o engradado.

Tinha alguma nota, um recibo de entrega ou pagamento?

- Nada, seu Manoel, só o engradado.

Seu Manoel se voltou para mim, novamente ríspido.

- O senhor colocou na minha porta. Por quê? Eu já lhe disse que não vendo essas porcarias aqui. Agora, pegue o seu engradado e dê o fora.

Não teve explicação. Tive que pegar o engradado e levá-lo nas costas até o meu carro, estacionado quase na Assis Brasil.

Pelo menos dessa vez, eu tinha tirado alguma vantagem do episódio: ficaria com um estoque de bebidas finas.

Nas outras vezes, não ganhara nada, só incômodos.

Repentinamente, eu ficava sabendo que havia uma encomenda nos Correios em nome de Fulano de Tal, morador em tal endereço e ele não sabia disso. Podia ser algo importante, eu procurava o sujeito e ele só faltava chamar a polícia. Tinha que insistir muito para que ele procurasse os Correios. Talvez, até para se livrar de mim, o sujeito acabava ligando para a agência do correio e realmente tinha uma encomenda lá para ele.

Alguns ficavam interessados na maneira como eu ficara sabendo do fato e eu explicava que não sabia, subitamente, aparecia na minha mente uma mensagem com nome e endereço.

Na maioria das vezes, surgia sempre aquela brincadeira: quando lhe informarem os números da mega sena, me avisa.

Isso nunca havia aparecido naquelas visões, nem os números da loteria, se o Inter iria ser campeão ou se a Dilma voltaria à presidência.

Agora, eu estava sentado diante do Dr. Franklin, psicanalista, tentando lhe explicar o que ocorria comigo. Ele, felizmente, me ouvia com atenção, possivelmente porque já me enquadrara numa das categorias dos distúrbios da mente estudados por Freud e costumava não se espantar com nada que seus pacientes pudessem dizer.

Essa vez, porém, seria diferente.

- Depois desse episódio do bar do seu Manoel, o senhor teve outra visão?

- Pois é, doutor, uma das razões para eu estar aqui é que tive uma visão de um fato que vai acontecer com o senhor.

- O Dr. Franklin não conseguiu disfarçar um sorriso irônico, mas me mandou seguir em frente.

- O senhor vai fazer 52 anos amanhã, não é verdade?

Ele sorriu novamente e disse que sim, provavelmente imaginando que eu havia procurado antes me informar de seu aniversário em algum almanaque médico.

- O problema, Dr. Franklin é que o senhor não vai completar os 52 anos e eu vim aqui para lhe avisar que hoje é o seu último dia de vida.

Embora ainda conservasse o sorriso irônico no rosto, ele pareceu ficar um pouco preocupado com a minha informação.

- O que o senhor quer dizer com isso?

- Esses nomes - Dr. Infante e Dra. Lorena - lhe dizem alguma coisa?

Agora ele estava muito atento.

- O Dr. Infante foi meu companheiro de faculdade e a Dra. Lorena é sua esposa e divide esse consultório comigo. Ela é também psicanalista.

- E o senhor tem um caso com a Dra. Lorena?

Ele enrubesceu um pouco e negou o fato sem muita convicção

- Foi caso do passado. Um relacionamento rápido. Mas como o senhor sabe disso?

- Não sei como, mas sei. Esse é o problema. O outro problema é que o Dr. Infante também sabe disso e quer acabar com tudo.

- Como acabar com tudo? O que senhor viu na sua imaginação?

- Infelizmente, acho, pelas minhas experiências passadas, que não é apenas imaginação. Eu vi que ele entra no seu consultório e lhe dá um tiro na cabeça. O senhor está sentado nessa cadeira, exatamente como está agora, atendendo um paciente, no caso eu, ele abre a porta, entra e não fala uma palavra, apenas lhe dá um tiro na cabeça.

O Dr. Franklin, nessa altura, já bastante pálido, ia dizer alguma coisa, quando tocou o telefone e eu ouvi a secretária, com uma voz aflita, avisando.

- O Dr. Infante passou voando por aqui e está entrando diretamente no seu consultório.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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