Os direitos das crianças

Habitam o meu lar e, em conseqüência, opinam sobre a minha vida três crianças de faixas etárias distintas. Cada uma tem a sua idiossincrasia, …

Habitam o meu lar e, em conseqüência, opinam sobre a minha vida três crianças de faixas etárias distintas. Cada uma tem a sua idiossincrasia, um tom de voz diferente, uma teoria sempre respaldada em verdades e muito, muito, para ensinar, independentemente da idade. Encurralada pelas peraltices das três crianças que perambulam comigo pela casa, só me resta a alternativa de ouvir e aprender. É sempre uma lição nova. Criança diz cada coisa, pergunta cada uma mais constrangedora, é como se fosse uma pegadinha a todo instante. São as minhas três melhores amigas.


A criança mais antiga que convive comigo já não dispõe de tanta agilidade. Não corre com tanto vigor pelo assoalho da casa, não rabisca as paredes com giz de cera, não masca chiclete e nem dá mais pulos no colchão. Mas, escondida debaixo de algumas rugas de sabedoria e de sua entrada na terceira idade, existe uma criança faceira, que escancara um sorriso sempre que um neto bate à sua porta de surpresa. E deixa ecoar o som de uma gargalhada de felicidade se vê o sucesso de algum filho ou quando se arruma toda perfumada e ouve um elogio.


A minha mãe já não precisa provar nada para ninguém. Adquiriu alguns direitos ao longo dos anos e hoje pode usufruir deles com um simples toque de uma varinha de condão. Mas, justamente quando não precisa provar nada é que o seu lado pueril entra em ação. Fica visível a felicidade infantil dela quando consegue reunir o filho e a nora, as filhas, os netos e seus agregados. Como ela já está naquela fase de ter tempo para fazer nada, mas brigou, definitivamente, com a cozinha, reúne todos para apreciar quitutes comprados no supermercado ou em confeitarias.


Nesse momento, minha criança mais idosa conta histórias que a gente já cansou de ouvir. E sempre quer ouvir de novo, como se fosse novidade. Bem coisa de criança. Nesse momento, minha criança mais idosa deve sentir orgulho ao ver como foi produtivo que suas crianças tenham pulado muro, subido em árvores, jogado amarelinha e brincado de esconder. Às vezes, quando todos vão embora, minha criança mais idosa, depois de passar a tarde falando pelos cotovelos, precisa de um tempo para ficar calada. Nestes dias, não é raro adormecer com a televisão ligada e uma lágrima perdida, talvez de saudade pelo filho criança que já se foi.


A segunda criança que não me deixa um minuto sequer, devo confessar, é a de temperamento mais difícil. Passou por poucas e boas. Se a vida fosse fácil, qual era a graça?  Mas não desce do salto alto. Orgulhosa, geniosa, cheia de razão. Entretanto, um simples mimo ou gesto de carinho produzem milagres. Andou fazendo greve por reposição salarial, e sem sua demanda atendida, sumiu da minha vida, o que me deixou cheia de rancor. Quem cruzava comigo naquele período, desconfiava que algo estava errado. Faltava um brilho, uma esperteza, uma curiosidade, uma vontade de viver.


Ufa, ela voltou. É a criança que vive no meu interior, que existe em todos nós, só que nem sempre permitimos que ela seja amiga da adulta que é superesperta. A minha criança gosta de correr na beira do mar, ganhar presente, lamber casquinha de sorvete, ser alegre e ser triste. Sem a preocupação de só pensar em coisas de adulto, de gente madura, de relacionamentos desfeitos, contas a pagar, a lista do supermercado. De vez em quando, encontro a criança que carrego dentro de mim chorando pelas crianças mudas, telepáticas, com fome, sem lar, sem saúde, sem estudo, sem infância.


Deitada na cama, fiz muito cafuné no dia 12 de outubro, na minha criança mais infantil e a que ainda me emociona sempre e de forma inusitada, em cada gesto novo, passo diferente de dança, música que aprendeu, nota alta que tirou no colégio. A minha filha Gabriela, terceira criança que vive comigo, ainda curte lápis de colorir, gosta de surpresas, ouvir as histórias da avó, fazer bolha de sabão e é uma tagarela (me deixa tonta de tanto falar). Adora ser a líder de tudo, comandar os projetos no colégio, pensar em atividades. No entanto, sinto que ela está fugindo e está pré-adolescendo.


Pela infância maravilhosa que todos deveriam ter e em homenagem às três crianças que moram comigo, me aproprio de um trecho do livro "Os direitos das crianças", de Ruth Rocha, para dizer que "embora eu não seja rei, decreto, neste país, que toda, toda criança, tem direito a ser feliz". 

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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