Os homens e as mulheres de Casanova

 Casanova retratado por seu irmão Francesco entre 1750 e 1755

 

As mulheres gostavam de Casanova, mas hoje não. Efeito das memórias dele. Entende-se.

Casanova gostava de conversar com as mulheres, tanto que se recusou a ir pra cama com mais de uma que não falava nenhuma língua que ele conhecia. Mais: torrava muito dinheiro com elas. Enfim, ele conhecia uma verdade bastante caindo de madura, mas incrivelmente ignorada por milhões de pessoas: todo mundo quer atenção e, ou, ouro.

Mas nas memórias nota-se o que há de manipulação, de cinismo. Nota-se outra coisa, difícil de engolir por gente com a cabeça feita por religiões e livrinhos românticos, ou filmecos e novelas de TV: o sexo, no século 18, estava meio que no mesmo nível de um bom prato na hora da fome ou de um bom copo na hora da sede, como duas e três o biógrafo J. Rives Childs não deixa de nos lembrar. Acho que o quesito diversão também tinha sua importância. Fora leitura, jogo e conversa fiada não havia muita distração.

E moderadores? Os católicos, sob a influência nefasta de São Paulo e de outros profetas com evidente desequilíbrio psíquico, até hoje manifestam repulsa ao sexo e ódio às mulheres, mas não há padre, bispo ou cardeal que apareça na história de Casanova que não seja um militante da bandalheira.

Ainda a elasticidade do século 18: esposas e filhas eram vendidas ou alugadas - às vezes pelas mães, é bom notar. Claro, ainda se vê isso, mas naquele tempo a coisa era feita sem discursos justificativos e, detalhe importante, os vendedores nem sempre eram pobres. Casanova não vendia suas mulheres, mesmo quando as tinha comprado: arrumava um novo protetor pra elas. Alguns outros libertinos também agiam assim. Não quero menosprezar o gesto de ninguém, mas noto a semelhança com preocupações do tipo com quem deixo o cachorro enquanto vou viajar?

A prodigalidade de Casanova era famosa. Sim, ele investiu nisso. Ele criou um personagem: galante, valente, culto, mão-aberta e grande conversador. Ele viveu e sobreviveu às custas do seu prestígio.

Os homens também gostavam de Casanova. Se vamos pra ponta do lápis, acho que teve mais amigos do que amantes. Sem falar que foi sustentado pelos amigos ricos ou em cargos importantes. Se não me engano, extorquiu dinheiro de modo sistemático apenas de uma mulher, a marquesa d'Urfé: chegada a ocultismo, esperava que Casanova, depois de rituais complicados e bizarros, transferisse a alma dela pro corpo de um menino, quando morresse. Difícil ter pena da marquesa, se você não estava entre os herdeiros de sua grande fortuna.

Claro que Casanova teve inimigos. Em geral, outros aventureiros como ele. Ou adversários nos favores, como se dizia, de alguma dona. A coisa acabava em cana ou expulsão da cidade ou em duelos. Às vezes apenas numas bengaladas - nesses casos dadas por Casanova, que era vingativo. É surpreendente que ele, ao contrário de muitos outros aventureiros, tenha morrido de velhice e do lado de cá das grades.

Como era de se esperar, as memórias de Casanova tiveram e têm muitos fãs e muitos detratores. Há uma chusma de especialistas que esmiúça cada linha pra detectar mentiras e aí dar um grito como o do Tarzan depois de matar um leão. Algumas das aventuras mais rocambolescas, quase sempre envolvendo mulheres, parecem ofender certos homens. Talvez meçam as proezas de Casanova pelas deles mesmos.

Aí outra chusma de especialistas esmiúça documentos nuns 10 países até descobrir provas que confirmam a verdade básica das memórias. Alguns desses especialistas, como J. Rives Childs, se esforçam pra deixar Casanova melhor na foto. Por exemplo, quando Casanova se tornou espião da Inquisição em Veneza, Childs acha que o fato de ele estar velho e com seus melhores protetores mortos pesou menos do que o fato de ser religioso. Bom não esquecer que Casanova passou várias décadas exilado de Veneza - vá lá, sua água natal - justamente por obra e graça da Inquisição.

Quando Casanova se apaixona loucamente por uma garota, Leonilda, a mãe dela avisa: ela é sua filha. Ele dá então um dote pra ela e se manda. Anos depois, encontra a filha casada com um marquês, velho e impotente. Casanova tem um caso de umas duas semanas com Leonilda e a deixa grávida. Mister Childs avisa: não nos choquemos, o século 18 foi o mais frívolo e corrupto, até bispo era acusado de transar com a irmã.

Não acho justificada a admiração por Casanova pelo número de mulheres que teve. Segundo ele mesmo, foram umas duzentas e poucas. Se vamos ficar na matemática, ponto pra George Simenon, que passou de 10 mil. Qualquer roqueiro também deixa Casanova no chinelo. Você, não sei, mas eu não estou interessado em matemática. Veja, grande parte das mulheres que Casanova teve, teve por uma noite ou uma semana. No máximo, semanas. Mal dá pra sentir o gostinho.

Esses números podem impressionar alguém que tenha se casado virgem ou que conheceu uma meia dúzia de mulheres. Mas se você teve uma dose razoável do que hoje se chama sexo casual, conhece o óbvio: isso é divertido no começo ou de vez em quando. Mas sexo casual como projeto de vida? Casanova repetia que seu plano era recrear seus sentidos. Só isso. Felizmente pra ele não era só isso. Ou a troco de que às vezes ele parava pra escrever sobre coisas como a política na Polônia? Não um artigo, mas um ensaio em vários volumes.

Sei não, me parece que sem convivências dignas do nome, quer dizer, sem que exercitemos nossos sentimentos contra ou em interação com os sentimentos de outras pessoas, não saberemos exatamente quem são essas pessoas e, pior, não saberemos quem somos nós. Daí, na maior parte do tempo, estaremos às voltas com as fantasias mais toscas ou loucas que criamos sobre nós mesmos na tentativa de suprir o vazio. Qualquer vida, por mais mesquinha que seja, tenta encontrar um enredo - mesmo que seja minúsculo e descosido. É um modo, tímido e talvez inócuo, de fazer sentido, de buscar segurança num universo que é uma bagunça cheia de atrocidades. E enredo, se não for de masturbação, precisa de pelo menos duas pessoas e alguns conflitos.

Enfim, quando você percebe o padrão da vida de Casanova - um namorisco e logo a ida pra uma nova cidade -, começa a sensação de tédio e um pouco de pena pelo velho libertino. Vai ver, J. Rives Childs não consegue nos dar a pessoa em profundidade. Ou não é dureza ver tantas aventuras se tornarem menos emocionantes que o dia a dia de uma vidinha besta como a minha?

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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