Os malabares da esperança

Último dia da liquidação de inverno do Leva Tudo no comércio de Porto Alegre. Último final de semana de férias remuneradas em 2006 desta …

Último dia da liquidação de inverno do Leva Tudo no comércio de Porto Alegre. Último final de semana de férias remuneradas em 2006 desta que vos escreve. Último fim de semana de férias escolares de inverno. E últimos dias para aproveitar as ofertas tentadoras e comprar o presente para o Dia dos Pais, que está para ser comemorado no dia 13 de agosto. E, de quebra, virada de mês e alguns com dinheiro no bolso. Com tantos atores principais protagonizando a cena, todos os capítulos no domingo à tarde levavam aos shoppings centers da cidade. Que sempre se mostra rotineiramente acolhedora. Mas que também sabe ser cruel ao estampar as diferenças.


Jamais me passou pela cabeça contrariar o movimento da população da capital gaúcha em direção aos paraísos das compras. Depois de alguns dias distante da máquina engolidora de dinheiro, principalmente quando se está acompanhado de uma adolescente cheia de opinião e metida a patricinha, não consegui mais me segurar. Com Gabriela Consumista Trezzi a tiracolo, sim, minha filha atende por este sobrenome do meio em se tratando de gastar e dispender, fui para a pré-estréia do filme "Lúcifer, sua família e seus amigos no shopping", com sessão extra de "Ninguém merece - O Retorno".


O frio seco que se instalou em Porto Alegre vestiu as pessoas da classe média da cidade, que anda espantando o inverno, com roupas quentes. Tudo muito luxuoso, fashion e radical. Pelos corredores do centro de compras, rostos pálidos de mulheres de todas as idades ostentavam sorrisos europeus e carregavam sacolas brasileiras. Os homens iam atrás, blasfemando o programa de índio que se viram obrigados a fazer. E se alguém conhecer um homem que não se irrite com uma mulher passeando em shopping, me mostre a raridade. E crianças encurraladas com pais e mães irritados ou nos carrinhos de bebês ensaiavam gritos e resmungos.


Sem lenço e sem documento, nada nos bolsos e nas mãos que eu quero é seguir vivendo e não gastar, a tarde de julho parecia transcorrer na mais absoluta calma, apesar de existir outro Brasil do lado de fora. Um Brasil que não tem roupas para agasalhar o inverno. Nem água quente para sossegar o frio. Nem gás encanado para ferver água para um café tão brasileiro. E, às vezes, nem mesmo gestos de solidariedade. Mas quem se importa? Como já disse Nei Lisboa na música "Carecas da Jamaica": vinde a mim as criancinhas que eu ensino a fome a receber cachê.


O Brasil brasileiro não preocupa nem tira o sono da parcela que freqüenta os shoppings centers do país, carteiras ricas de dinheiro e uma pobreza de idéias. Não tira o sono da moça alegre, cabelo cheio de luzes, que disputou no tapa um espaço na Praça de Alimentação e sem pressa nenhuma se pôs a contar os pacotes de bijuterias que vão tornar os seus 20 e poucos anos mais enfeitados nos próximos dias. Tudo por R$ 50,00. Liquidação das boas. Nem a Patricinha (perdão a todas que ostentam esse nome) que saiu da loja de som com cinco CDs (de balaio, mas ela não admite? nem morta) e torrou a mesada de R$ 50,00 em menos de cinco minutos.


Na mesa ao lado, uma família com quatro filhos pequenos deixou com os atendentes mecanizados e automatizados de uma loja de fast food R$ 48,00, de uma só vez, para pagar os McLanches dos meninos, com idade em escadinha, de dois anos aos oito anos. Nos corredores da Praça de Alimentação, tem também a famosa paquera, ou sei lá que nome isso tem hoje em dia. Mas os fins são os mesmos e nesse caso, os meios justificam os olhares trocados, a malandragem escondida embaixo dos bonés, "moronda" das mina fingindo que o celular toca. É um mundo envidraçado.


Do lado de fora, como animais encurralados em suas jaulas, uma legião de sem-tetos, sem-famílias, sem-alimentos, sem-roupas quentes, sem-carinho e sem-muita esperança, ainda aguarda o vermelho do semáforo. É quando os egressos do shopping center, a bordo de seus carros importados, têm que, obrigatoriamente, parar e encararar os olhares angustiados dos meninos e meninas em situação de vulnerabilidade social que ensaiam pequenos malabares para ganhar uns trocados. Michael, totalmente mal agasalhado e com a barriga roncando, encosta no proprietário de um Picasso e diz: "Moço, eu podia estar roubando, eu podia estar cheirando cola, mas estou aqui pedindo um dinheiro prá minha mana tomar leite".

O carro arranca rapidamente deixando Michael mais uma vez sem resposta e sem as moedas que esperava arrecadar nas esquinas de algum shopping do País. Ao chegar no seu barraco, certamente, ele enfrentará mais uma noite sem comida farta, sem cobertor quente e, quem sabe, sonhará com o brilho dos embrulhos que soterravam as sacolas do Picasso. Nos seus apartamentos luxuosos, enquanto Michael divide uma sobra de comida retirada do lixo com sua mana, é a hora de abrir os pacotes e contabilizar os lucros de mais um dia desenfreado de consumo. Na manhã seguinte, Michael, habitante de um Brasil brasileiro que muitos não gostam de reconhecer, aposta em melhor sorte nas esquinas de Porto Alegre.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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