Os oito odiosos

Não, não falo do Temer e do resto da quadrilha. Eles somariam muito mais de oito ou oitenta. Falo do filme do Tarantino, que …

Não, não falo do Temer e do resto da quadrilha. Eles somariam muito mais de oito ou oitenta. Falo do filme do Tarantino, que poderia se chamar Os dez odiosos, se contarmos o diretor e o tradutor, porque odiados não faz o menor sentido, além de não soar tão bem quanto odiosos. Quanto ao diretor, aguarde um minutinho.
Vi o filme apenas agora porque não saio de casa pra ver nada do Tarantino. Mesmo na tevê eu reluto até topar com um dia vazio e cheio de preguiça mental. Tem ainda outro detalhe: gosto de faroeste. O fato de achar noventa e nove vírgula nove deles lixo inominável não me desanima. Daí que assisto a uns minutos de qualquer faroeste pra ver pra que lado o vento rola o tumbleweed.
Fui até o fim dos Oito apenas pra comprovar o que penso sobre Tarantino. Comprovar também a minha suspeita, desde as primeiras cenas, de que apenas os cavalos sobreviveriam. Enfim, o tempo todo me perguntei: o que dizer de uma história em que todos morrem? Pior: o que dizer de uma história em que o autor mexe os pauzinhos descaradamente pra que todos morram? É tudo tão tosco que me pergunto se merece que se argumente.
O prazer do Tarantino com cenas de tiroteios e sangueiras em geral devia ser estudado pela medicina forense. Veja, seus personagens são uns canalhas da pior espécie. Isso até é dito mais de uma vez por eles mesmos. Mas não sentimos nada, porque eles são extremamente superficiais, esquemáticos e exagerados como personagens de desenho animado. Não há grande diferença entre ver o caçador de recompensa levar um tiro no saco e se esguelhar de dor e ver o Jerry espancando o Tom. Tudo parece, então, uma mera fantasia de vingança de um adolescente fracote.
Abrir parênteses. Nessas alturas, lembro da cara do Tarantino. Ela já começa a ficar flácida, coisa que não pega bem num adolescente. Dá um pouco de pena - esse adolescente prometia tanto. Fechar parênteses.
Compare qualquer personagem de Os oito odiados com William Munny, o pistoleiro de Os imperdoáveis, ou, no mesmo filme, com Little Bill Daggett, o velho pistoleiro agora inebriado no seu papel de xerife. Em Munny e em Little Bill a gente acredita. Nas ameaças atrozes que Munny faz ao abandonar o saloon a gente acredita. Nas histórias que Little Bill conta sobre a canalhice e a covardia dos pistoleiros a gente acredita. Quando Munny diz que matou mulheres e crianças ou qualquer bicho que ande ou rasteje, não se sente como uma gracinha ou bravata. É uma ameaça pra ser levada a sério. Munny é realmente odioso. Mesmo que os que ele mata não sejam muito melhores, são pessoas de verdade, não figurinhas num álbum do Velho Oeste Espaguete que o Tarantino fez quando era guri.
No fim, o olhar das prostitutas pra cidadezinha na escuridão, sob a chuva, ao fim do massacre, vale todos os discursos e vale o filme. Elas tinham razão em sua vingança. Mas a vingança as fez perder a razão. Talvez sintam que depois serão trucidadas pelos ditos cidadãos de bem que sobreviveram.
Tarantino será capaz de dirigir uma cena dessas, quando crescer?
Sei que elogiam muito os diálogos do Tarantino. Ele deve se deliciar com o que escreve, porque se estende além de qualquer limite razoável. Se cortarmos as conversas fiadas, seus filmes teriam uma hora a menos ou uma hora e meia. Por aí. Pra completar, são diálogos que parecem escritos por um garoto de catorze anos - metido a engraçadinho e pretensioso, ainda por cima. Um exemplo: um dos caçadores de recompensa, depois de quebrar o violão, diz que, se a mulher abrir a boca de novo, ele tocará pra ela a marcha fúnebre não sei de quem. É, muito verossímil um caçador de recompensas, vivendo no cu do mundo, entendido em música clássica. E como piada, francamente, parece um imitador barato do Raymond Chandler de porre.
Você quer humor negro? Vide Fargo, dos irmãos Coen. Quando um dos criminosos chega em casa e vê a cadeira da refém vazia, olha pro companheiro sinistro diante da tevê. Ele encolhe os ombros e diz algo assim: "Tava gritando muito".
Tarantino é incapaz de uma elipse dessas. O negócio dele é mostrar os miolos voando.
Se a crítica cinematográfica não tivesse descido ao nível de copiar releases e dar as cifras astronômicas que as produções custaram ou quanto se faturou nas estreias, duvido que a reputação de um Tarantino se mantivesse. Nem em sua obsessão principal, a violência, ele se sai bem. Quer violência, veja Scorsese, por exemplo.
Se você se imagina numa cena de Os bons companheiros ou de Cassino, você treme - você sabe que não sairá vivo. Se você se imagina numa cena de Os oito odiados, você espera a voz de comando: corta. Aí você limpa o suco de tomate do peito e talvez boceje de tédio.
Duelos
Por falar em faroeste, a primeira coisa que a gente lembra é dos dois pistoleiros na rua, na hora do duelo. Caminham um em direção ao outro. Param e aguardam pra sentirmos a tensão. Aí o bandido saca primeiro, mas o mocinho é mais rápido. Resultado: o bandido morde a poeira - expressão, boa por sinal, sempre usada nesses casos.
Quantas vezes isso aconteceu na realidade? Nenhuma, se acreditarmos em Mark Twain. Leia o sensacional As aventuras de Huckleberry Fin. Tem ali a melhor descrição de um duelo no Velho Oeste. Um fulano promete matar outro e sai, armado, em busca dele. Mal o vê, manda bala. Não tem essa de botar o Colt 45 no coldre pra dar a chance de igualdade ao inimigo.
Há um tiroteio exemplar de Wilde Bill Hickok, se não for mais uma lenda. Um cara atira nele na rua, erra, e se esconde atrás do cavalo. Em qualquer filme, Wilde Bill acertaria o inimigo entre os olhos, já que a cabeça dele aparecia acima da sela. Wilde Bill atira no cavalo, que cai sobre o homem, quebrando suas pernas. Isso não tem jeito de realidade?
Mais cinema
Assisti Clever, filme uruguaio dirigido e escrito pela dupla Federico Borgia e Guilhermo Madeiro.
Curto, seco, engraçado - um engraçado sem claque. Com uma pitada de inteligência, outra de imaginação, um punhado de personagens de verdade, quem precisa de truques de roteiro pra prender a atenção do espectador? Quem precisa de efeitos especiais? Mas o melhor de tudo: nem precisa de cem milhões de dólares. Nem precisa? Com cem milhões de dólares dá pra fazer uns dez filmes como Clever.
PS: Como dizia Isaac Asimov, os efeitos especiais em geral são o molho que cobre um bife duro.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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