Os últimos dias de Esmeraldino Fortes

Meu nome é Esmeraldino Fortes, mas sou mais conhecido como E.F. Estou há quase um mês nesse hospital. Hoje é sexta-feira e faz muito calor. Nos poucos segundos que consigo ficar com os olhos abertos, vejo duas ou três pessoas que parecem se abanar furiosamente em volta da cama. Ou estariam brigando? Quem são elas? Parentes? As ex-mulheres discutindo sobre quem ficaria com a pensão? Nem tinha morrido e elas já estavam lá - 70%, pra mim e 30% pra você que eu aturei o canalha mais tempo.

Fechei os olhos. A dor vem devagarzinho, subindo do calcanhar em direção à virilha, cada vez mais forte. Da última vez, ela foi tão grande que nem deu tempo de chamar a enfermeira. Virei de lado, mordendo a ponta do travesseiro para não gritar. Quando o espasmo passou, senti que tinha sujado toda a cama. A atendente chegou para trocar as roupas e não conseguiu disfarçar a sua repugnância. Percebi no seu olhar, embora ela tentasse esconder falando num tom de brincadeira - que é isso, tinha que chamar antes. Era mulata gorda, com um avental branco e luvas de plástico. Deixei que ela me virasse de lado para que arrancassem os lençóis e a camisola de doente.  Nu sobre o plástico que cobria a cama, fui esfregado com uma esponja, vestido novamente e colocado sobre um lençol limpo.

Um homem transformado num objeto, sem vontade, nem direitos. Lembro Jacques Thibault. Um pacote jogado de um lado para outro. Isso, um novo Jacques Thibault, meu herói da juventude. O socialista cheio de ideais, criado por Roger Martin de Gard. Tinha 15 anos quando descobri o livro.

Ontem, trouxeram um padre. Ele veio com aquela conversa melosa - Deus tem seus próprios desígnios, o sofrimento de agora é o caminho para a redenção - que lembrava os tempos do colégio marista. Aqueles padres que gostavam de colocar os meninos no colo para falar sobre as virtudes da disciplina, de distribuir santinhos no final das aulas, uns filhos da puta.

O Orlando - o mais velho da turma - contou um dia no recreio que se escondeu no dormitório dos padres e viu quando o Irmão Afonso levou o Carlinhos para o seu quarto. Pelo buraco da fechadura, viu o padre enrabando o Carlinhos. Que fim teria levado o Orlando? Ele era o único que fumava. Foi o primeiro a ter pentelhos. Uma vez ele levou um grupo para o banheiro e mostrou como se masturbava. Onde andaria o Orlando? Antes de terminar o primeiro grau, os padres o expulsaram da escola. Ninguém falou nada do que acontecera, mas todo mundo ficou sabendo que a mãe do Orlando fora chamada no fim-de-semana para uma reunião com o Conselho de Ensino e os padres falaram tudo que o Orlando tinha feito.

Que ele se masturbava na aula, que tentara enrabar o Carlinhos e que - suprema blasfêmia - havia dito numa aula de religião que se vivesse na época do Cristo, Maria não teria ficado virgem. Orlando não apareceu na segunda-feira e nunca mais foi visto na cidade.

A dor continuava aumentando e o melhor seria chamar logo a enfermeira. O médico havia explicado: nada de sentir dor.

Chama a enfermeira que ela aumenta a dose do remédio. Ela estava injetando a morfina através daquelas agulhas que fincaram nos braços e junto do pescoço. Sabia que a dose tinha que ser cada vez maior para fazer efeito, mas tentava não pensar no momento em que ela se tornasse inútil. Até lá, estarei morto.

Durante o tempo em que estava no hospital, a cama ao lado já tinha mudado três vezes de dono. O primeiro - um velho raquítico de quem não soube nem ao menos o nome - morrera durante a noite sem um lamento sequer. Quando as enfermeiras chegaram pela manhã com o primeiro estoque daquelas pílulas amarelas que todos pacientes pareciam tomar, ouvira a enfermeira-chefe avisar as outras - pro paciente da cama B não precisa mais nada. Depois, elas fecharam uma cortina e só ouvi quando carregaram uma maca para o corredor.

Duas horas depois, a cama B já tinha outro paciente, um sujeito gordo que passava o tempo todo chamando as atendentes para trocar o vaso sanitário que ele metodicamente ia enchendo de catarro. Uma tarde, o gordo começou a resfolegar como um bicho. O caso deve ter sido muito sério porque vieram as atendentes, as enfermeiras e até o médico de plantão, num corre-corre danado. Quando ocorriam estas crises, a primeira coisa que as atendentes faziam era fechar as cortinas em torno da cama.

Do outro lado, só se ouvia os estertores do gordo e palavras perdidas das enfermeiras e do médico - olha o pulso, aplica mais dois centímetros, não adianta, leva pra UTI. E lá se foi o gordo, resfolegando pelo corredor afora, para a UTI. Nunca mais se viu o gordo. Mesmo que voltasse, não tinha mais lugar para ele na cama B. Ela foi logo ocupada pelo seu Machadinho, um mulato de carapinha branca que sofria com um quisto no pulmão. Onde é que anda o seu Machadinho? Eles o levaram num fim de tarde, depois de um acesso de tosse que parecia não ter fim. Um dia teria que perguntar para a enfermeira-chefe por onde andava o Machadinho.

Quando se pergunta por algum paciente, elas respondem apressadas, tá bem, tá bem. O cara tinha sido até enterrado, e elas continuavam dizendo, tá bem, tá bem. Era pra manter o ânimo do pessoal, ouvira alguém dizer quando ainda tinha forças para dar uns passos pelo corredor. Ninguém ficava bem naquela ala do hospital. Dali só se saía direto pro caixão. Daqui a pouco serei o mais velho na enfermaria. Quase um mês resistindo àquela dor filha da puta. Outro dia, pegara uma enfermeira falando - o cara da cama A não desocupa a moita. Ou será que sonhara com isso? Era muito difícil saber o que era sonho ou realidade.

O pai viera de visita, uma vez. Ele estava com aquele chapéu marrom, com terno e gravata. Sentara numa cadeira na beira da cama e falara do seu velho jeito - isso é hora de ficar deitado, levanta logo daí. Ele parecia estar muito irritado por encontrar o filho deitado na cama num dia de semana, no meio da tarde. Desculpa pai, mas tá doendo. Eu não consigo levantar. Deixa de ser maricas, guri, levanta logo, isso é manha que a tua mãe te botou. Tentei levantar para obedecer mais uma vez o pai, mas mal consegui mexer as pernas. Vamos lá, deixa de lado toda esta preguiça, levanta logo. Mais um esforço e finalmente pus uma perna pra fora da cama. Fui escorregando devagar - levanta logo, seu preguiçoso - até cair com um baque surdo no chão. Foi preciso que duas atendentes para me colocar outra vez na cama.

- Eu já falei que não é pra tentar sair da cama, tem que chamar a atendente. - Foi o velho, ele queria que eu saísse da cama.

- Que velho? Boa pergunta, que velho? Ele certamente tinha ido embora quando viu as enfermeiras chegando. Saíra andando devagar, com aquele jeito de escolher metodicamente onde pisar, o chapéu marrom na cabeça, o terno completo e a gravata azul-marinho. Qualquer hora dessas, o velho iria voltar. A mãe é que nunca vinha. Ela tinha muitas coisas para fazer em casa e o pai não gostava que ela andasse sozinha pela rua.

Tinha que dar um jeito de avisar a mãe que o Piloto tem ficado todas as noites embaixo da cama. Igualzinho a quando a gente ganhou o cachorro. Ele tinha sido desmamado muito novinho e ficava chorando de noite. O pai não queria, mas a gente colocou o Piloto embaixo da cama. Quando começava a chorar com saudades da sua mãe, coçava a sua barriga. Mesmo depois que ficou grandão, o Piloto gostava de se esconder embaixo da cama.

O pai dizia que lugar de cachorro era na rua, cuidando da casa. Coitado do Piloto, que não servia para cuidar de coisa alguma. Ia com todo o mundo, bastava passar a mão na sua cabeça. Não sei como ele conseguiu entrar no hospital. Mas se as enfermeiras descobrirem vão querer botar o cachorro pra rua. O Piloto não faz mal a ninguém e ajuda a passar a noite. O hospital de madrugada é muito chato, não acontece nada, salvo quando alguém resolve morrer. O Piloto fica caminhando pelo quarto e quando uma enfermeira aparece de repente, ele se esconde embaixo da cama. É um bicho muito inteligente, pena que o pai implique com ele. Com quantas coisas o pai implicava? Os sapatos era uma delas. Nunca estavam limpos o suficiente para ele. - Vai engraxar estes sapatos, guri. Os dele estavam sempre brilhando e nunca estragavam.

Aqui no hospital não se tem sapatos. Ao lado da cama havia um chinelo de dedo, que usava para ir ao banheiro quando ainda podia caminhar. Agora não servem pra mais nada. Preciso ver se ele ainda está lá, ou o pessoal da limpeza já levou embora. Pra que chinelo, se não se sai mais da cama? Estranho isso, fazer tudo em cima da cama: comer, beber, fazer as necessidades, tomar banho. Tudo deitado. Como seria bom poder ir ao banheiro. Um lugar limpo e razoavelmente grande. Sentar no vaso com o jornal do dia na mão. Ficar um tempo, até a perna começar a formigar. Pensar que jamais vai sentar novamente num vaso de banheiro para ler as notícias do futebol no jornal. É uma puta sacanagem estar preso numa cama enquanto os outros andam pelas ruas e podem frequentar banheiros limpos e arejados. Os outros sempre ficam com a melhor parte. E quase nunca por grandes méritos pessoais. É tudo uma questão de oportunidade, de estar no lugar certo, de ter amigos influentes, de ter um pai rico.

Veja o Olegário. Botou na cabeça que seria jornalista, mas nunca se preocupou em aprender a escrever. Dizia que ler um livro era perder tempo. Chegou no jornal para auxiliar no setor policial a pedido de um tio que trabalhava na distribuição. Olegário percorria as delegacias durante a madrugada e copiava as ocorrências que os policiais lhe forneciam. De manhã, ele passava as anotações a limpo e entregava aos redatores que deveriam dar forma às matérias. Um dia faltou alguém na cobertura da Assembleia e o Olegário foi cobrir a falta. Ninguém sabe como, Olegário foi ficando. Ele trazia as notícias já prontas para a página política, redigidas pela assessoria da Assembleia. Algum tempo depois, alguém descobriu que sempre havia uma notícia favorável ao deputado Temístocles Pousadas, um fazendeiro da Fronteira, até então um personagem quase desconhecido no Parlamento.

A redação pediu a cabeça do Olegário, mas não levou. - Precisamos ter alguém ligado a este pessoal de direita, falou o chefe de redação, Tubino Alvarez, e Olegário foi ficando. Seis meses depois, ele já era o responsável por toda a cobertura na Assembleia. Mais seis meses e ele acumulava o trabalho do jornal com um cargo de confiança no gabinete do deputado-fazendeiro. Nas eleições, fez uma dobradinha com o Temístocles. Não ganhou, mas ficou com crédito no partido e na outra eleição, depois que o Temístocles morreu, saiu direto deputado federal. Outro dia falaram no nome do filho da puta até para ministro. E eu aqui, fodido nesta cama.

O Olegário é tão canalha que outro dia apareceu aqui no hospital. Ele vestia um jaleco de médico para não chamar atenção.

- Sou muito conhecido e se me descobrem aqui, não param de pedir coisas. Sabe o que ele queria? Dizer que me desculpava por tudo que disse de mal dele. O filho da puta inclusive me deu um conselho - você tem que ser mais humilde e não ficar invejando os outros. Eu invejando alguém, que mentira. Eu só falo o que penso. Isso eu disse na hora pro Olegário. Você é um oportunista, um político sem ética, um analfabeto de merda. Ele ouviu tudo calado, fingindo que estava examinando o prontuário na beira da cama. Quem também apareceu foi a Maria José. Veio com aqueles peitos enormes quase saindo pra fora do vestido. Sentou com as pernas cruzadas numa cadeira em frente a minha cama, mostrando suas grandes coxas. Pobre Maria José, que ainda não se deu conta que se tornou uma velha. Ela quis subir na cama. - O que tu precisas é de uma boa trepada. Isso aqui é um hospital e não um motel, eu falei pra ela. - Tu sempre quis trepar comigo, aproveita agora. Conheci Maria José quando tinha 15 anos e ela 18. Na época ela era noiva e como todas as noivas da época, virgem. Me apaixonei - Eu te amo como um irmão mais novo, ela dizia. Mesmo assim, ela deixava pegar na mão e vez que outra permitia também um beijo na boca. - Eu vou subir nesta cama. - Agora não adianta mais. Passou a oportunidade. A Maria José ficou chateada, disse que era uma mulher ainda muito gostosa, que todos os homens queriam trepar com ela. - Outra hora, vou falar para as enfermeiras não deixar mais a Maria José entrar. É muito triste reencontrar essas pessoas da nossa juventude. São elas que mostram como estamos velhos. Por mim tudo bem, mas se alguém nos encontrar juntos vai pensar que isso virou um asilo de velhos. Isso eu não quero. Vamos ver se melhoro bastante para dar o fora deste lugar. Quem sabe ainda posso voltar a jogar um futebolzinho no fim-de-semana.

A enfermeira, além da pílula amarela de todos os dias, me deu outra, escura. - O que é isso?

- Ué, você não se queixou que tem muitos pesadelos, que não consegue dormir direito. Tome, você vai ficar mais tranquilo.

Tranquilo, quem quer ficar tranquilo? Eu não. Preciso ficar atento, porque neste hospital se eles veem que você está meio mal, vão logo querendo te despachar. Botam uma pílula escura no teu café de manhã e você não acorda nunca mais.

Amanhã, quando acordar, vou pedir para chamar o Juca. Esse era um cara legal. Quando eu fazia coleção das Balas Esportivas, foi ele quem me conseguiu uma figurinha difícil. Era o Touguinha. Quase ninguém tinha. Diziam que era uma figurinha selada. Com ela quase consegui fechar o álbum. Onde andaria o Juca? Possivelmente ele seria um desses produtores de shows, encarregado de resolver qualquer problema. Falta uma poltrona do século XIX, o Juca resolve. O ator está com dor de dente, o Juca arruma um dentista na hora. Vou pedir ao Juca para arrumar um travesseiro de penas de ganso para mim. Já falei várias vezes para a enfermeira, mas ela disse que os travesseiros do hospital são padronizados e que as penas de ganso causam alergia aos doentes.

- Claro, é um travesseiro que você precisa? Não tem problema, disse o Juca, eu mando entregar amanhã. É melhor entregar diretamente pra mim. Se deixar na portaria, eles roubam tudo. Quando cheguei aqui eu tinha um belo terno de linho. Outro dia, olhei no armário e ele tinha desaparecido. Amanhã ou depois, quando eu sair do hospital, o que vou vestir? O Juca diz que dá um jeito. Até perguntou se eu não queria um casaco de couro.

Eu não gosto de couro. Não é por causa desta bobagem de ecologia. Pode matar tudo que é boi e fazer quantos casacos quiser do seu couro. Boi é um bicho muito idiota mesmo. Só que eu não gosto de usar. Parece coisa de policial. Policial gosta de usar casaco de couro e fazer aquele olhar de durão. Acho que eles ensinam isso na escola de policiais. O cara de casaco de couro fica te encarando com aquele olhar de provocação que eles aprendem na escola. Se você resolve encarar também, acaba dando confusão. Eles vão pedindo teus documentos. Se não tiver, você vai se dar mal. Acaba até mesmo preso. Mas aqui no hospital eles não entram assim de casaco de c ouro. Eles se disfarçam bem. Mas a mim não enganam. Eu conheço pelo cheiro. Eles fedem a cigarro e bebida barata.

Outro dia veio um cara aqui dizendo que precisava revisar os encanamentos do banheiro. Eu saquei logo que era um policial disfarçado. Eles ainda estão querendo saber quem foi que roubou aquele livro na livraria da Riachuelo. O cara ficou me olhando, encarando com aquele olhar que eles aprendem na escola, mas eu aguentei firme. Certamente alguém falou lá na delegacia que haviam roubado um livro na livraria e os caras logo desconfiaram de mim. Nesta enfermaria ninguém gosta de ler. O máximo que se vê são aquelas merdas de história em quadrinho. O cara não teve coragem de fazer uma revista na minha cama. O livro estava bem embaixo do travesseiro, mas ele só me olhou com aquele olhar duratildeo. Depois foi embora. Vai ser preciso encontrar um lugar seguro para esconder o livro.

O pai nunca lera um livro mas achava importante que o filho gostasse de livros.  - Enquanto está lendo, não anda com as putas pegando gonorreia. Andar com as putas era sempre uma decepção. Elas não deixavam beijar na boca. No inverno, elas não queriam tirar a parte de cima das roupas. - Pra que, se o buraco é embaixo? Já terminou, bem? Já gozou? Acaba logo que tem gente esperando. Você economiza uns trocados para comer uma vagabunda no fim-de-semana na Voluntários  e ela ficava te apressando. Ou então fica olhando pro lado, distraída como se não fosse com ela. - Deu? Com os livros, não tinha nada disso. Você podia pegar um livro de sacanagem, tipo Amante de Lady Chaterlay e ficar imaginando estar no lugar do cara que come a Lady. No final, para aliviar, você metia uma boa punheta. Podia ser também A Carne, do Júlio Ribeiro.

O pai gostava quando o via com um livro. Aqui no hospital não tem biblioteca, ninguém gosta de livro. Os médicos são todos meio imbecis. Outro dia perguntei pro cara que veio me examinar se ele conhecia o Graciliano Ramos. O sujeito achou que era algum funcionário do hospital e quis saber se eu tinha alguma queixa para fazer. Queixa do Graciliano?

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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