Para o meu amor passar

O tempo a cada novo dia amanhece mais envelhecido. O sol, com o seu amadurecimento, passa a apresentar novas nuances de cor, embora continue …

O tempo a cada novo dia amanhece mais envelhecido. O sol, com o seu amadurecimento, passa a apresentar novas nuances de cor, embora continue sempre lindo em Porto Alegre. A lua ainda é dos namorados e, às vezes, como convém a um bom relacionamento de muitos anos, pede um tempo para renovar o desgaste. Os provérbios, ditados e demais ensinamentos da chamada sabedoria popular, no entanto, permanecem intactos e parecem que renascem fermentados. Nenhum deles me parece tão atual e apropriado a minha rotina enlouquecida de mãe e filha que se confrontam no mesmo lar do aquele que diz que "mãe é tudo igual, só muda de endereço".


Desempenhar no lar doce lar, ao mesmo tempo, a função árdua de mãe e filha tem exigido bem mais "jogo de cintura" do que eu imaginava que pudesse ter. Mais difícil ainda se você tem a pretensão, como essa que vos escreve, de procurar fazer tudo com o máximo de perfeição, mesmo que, ao final de tudo, o resultado se apresente com algumas falhas de percurso. Vida dura. Ao acordar e preparar um café suculento para a minha filha Gabriela Martins Trezzi, sou obrigada a perder preciosos minutos explicando a importância nutritiva da primeira refeição do dia. A mãe se despede. Ao sair, blasfemando, quando minha mãe reclama que engoli depressa demais um café requentado. A filha fala mais alto.


Na casa perfumada das três mulheres, encravada na primeira rua que mapeia o Bomfim, as emoções se misturam, se separam, são conflitantes. E voltam a se juntar para se nutrir do sentimento mais nobre e antigo do mundo: o materno. Mãe nunca tem vez. Sempre o filho vem em primeiro lugar. Ela coloca qualquer compromisso em segundo plano para abrigar os rebentos. Mãe nunca tem fome. Sempre o filho precisa ser alimentado prioritariamente. Ela deixa tudo para depois a fim de fortalecer seus filhotes. Mãe nunca tem frio. Sempre gasta a maior parte do seu dinheiro para comprar roupas quentinhas para os seus pequenos. Ela sepulta todo seu lado consumidora para depositar o desejo de compra nos seus herdeiros.


Você deve estar pensando quem me deixou fugir do hospício antes da alta (?dizem que sou louca, por pensar assim, mais louco é quem me diz?). Ou então que me passei na dose dos antidepressivos e estou delirando. Ou ainda que estou com o calendário virado no mês errado. Às vésperas do Dia dos Pais, esta colunista, sempre tão centrada (hehehehe? agora, enlouqueceu de vez) totalmente fora da casinha, falando sobre o amor materno. Tudo tem uma explicação. Nos últimos 15 anos, para deixar por menos, sempre uma figura de mãe esteve ao meu lado em todos os momentos entorpecentes. Quando eu pensava que não iria conseguir sair de alguma situação complicada, lá estavam a mão, o abraço, o conselho, o afago, o carinho de minha mãe.


Com minha mãe, aprendi que sempre se pode aprender mais, que sempre se pode acarinhar mais, que sempre se pode dar mais uma chance, que sempre um sorriso abre as portas e que a paciência é a mãe de todas as virtudes. Com minha mãe, compreendi o verdadeiro valor da vida, a real importância de se cultivar amizades, o significado lúdico da palavra perdoar, a ternura subliminar de um gesto de carinho. Com minha rebenta, desenvolvo a gratidão diária de ensinar o que aprendi. Com minha filhota, distribuo quilos e quilos de beijos e abraços sem fim para que ela tenha um sono mais tranqüilo. Com minha cria, socializo os meus momentos de imperfeição. Com minha Gabriela, sou mãe enérgica, cruel, severa, autoritária, que cuida as horas e tira satisfação. Com minha Bibi, sou mãe amada, gentil, uma gigante adormecida, uma boba e mole criatura.


Nesta semana, novamente, meus sentimentos maternos foram colocados à prova. A tagarela Gabriela me esperava retornar do jornal, noite dessas, para contar, com uma certa vergonha, uma travessura que jurava nunca mais iria fazer. Enquanto mãe, dediquei-lhe todo meu tempo e esqueci todas as encrencas do dia. A filha Márcia rezava para chegar em casa e tomar um banho quente e descansar após um dia corrido e uma superenxaqueca. Teve que adiar os planos para atender à sua filha. A vó da Gabriela e mãe da Márcia, que iria chegar um pouco mais tarde, destilava um nervoso, já que enfrentaria mais uma bateria de exames de saúde no dia seguinte.


O cenário serviu para reforçar o velho provérbio de que mãe é tudo igual. Só troca de endereço, de CEP, de camiseta, de nome de remédio, de nome de cantor preferido, de bolo de negra maluca, e às vezes troca de creme rejuvenescedor. Por isso, quando eu estiver bem velhinha, quero continuar lúcida e com força para sentar numa cadeira de balanço e cantar uma linda cantiga de ninar para meus netos e netas. A mesma que eu ouvia de minha mãe e cantei para a Gabriela; "se essa rua, se essa rua fosse minha? para o meu amor passar".

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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