Pérolas do silêncio

As exuberantes areias de Copacabana se ofereciam despudoradas para o meu desfrute. E os bares borbulhando de novidades na Avenida Atlântica abriam suas portas …

As exuberantes areias de Copacabana se ofereciam despudoradas para o meu desfrute. E os bares borbulhando de novidades na Avenida Atlântica abriam suas portas para me receber. O final inevitável. Com um olhar 43, pediria um chope, batata frita, e logo estaria conversando com alguém. Assim nasceria uma bela noite carioca. Mas o convite para assistir ao show do pianista Arthur Moreira Lima, do XXVI Congresso da Acrefi, que me levou ao Rio de Janeiro para fazer a cobertura do evento para o jornal, terminou me cativando mais. Adeus à noite de prazeres fáceis e uma total entrega aos prazeres sofisticados.


Enquanto Moreira Lima detilhava com maestria nos teclados do piano, cerrei os olhos e viajei no tempo, nas emoções, nos sentimentos mais escondidos. Embalada pelo som silencioso do piano, estive em tantos lugares, revivi tantas situações, mudei tantos finais. O que poderia parecer intimista é mais do que isso. É incrível. O silêncio perturbador que existe no silêncio. É algo que vale mais do que mil palavras, preenche linhas e linhas de qualquer redação, inunda de sons qualquer melodia e, finalmente, emudece de medo.


O som do silêncio é algo que dói dentro da gente que não devia, é feito uma aguardente que não sacia, é como estar doente de uma folia. Fechei os olhos e me transpus para momentos da infância, fazendo muita arte e molecagem. Depois, na adolescência, o instante furtivo do primeiro beijo. Mais tarde, os amassos no portão. Aquele algo mais. O primeiro emprego. O consumo pago com o primeiro ordenado. O primeiro porre. Quando é que se pode lembrar de tanta coisa assim se não se está na companhia do silêncio? 


Às vezes, o meu reencontro comigo e o meu silêncio interior alimentado pelo som emudecedor do piano eram interrompidos pelos aplausos entusiasmados da platéia. Nada que me desviasse de minha rota inicial. O pianista agradecia, anunciava a sua nova apresentação e retomava, como que em transe. E eu também. Lembrei de amores compreendidos, sofridos, mal-amados e mal-acabados. Lembrei de empregos, valiosos, compensadores, pouco atraentes. Lembrei de amigos, insuperáveis, insubstituíveis, sempre companheiros. Concluí que tudo sempre valeu a pena, porque a alma nunca foi pequena.


Quando imaginei que já havia passado por todo meu "revival", Moreira Lima informa que iria encerrar o espetáculo com "Carinhoso", de Pixinguinha. Ah, por favor, ninguém merece. Ele poderia ter escolhido algo mais leve, mais light, quem sabe mais Rio de Janeiro, tipo Garota de Ipanema, Eu sei que vou te amar, Chega de Saudade. Agora "Carinhoso", é de cortar os pulsos, convenhamos. Devo confessar que meu trauma é não ser cantora. Um bem para a humanidade, porque,definitivamente, não tenho o mínimo dote artístico. Mas, enquanto ele deixava as notas de Carinhoso brotar do piano, eu cantava baixinho a música.


Exatamente às 23h35min. Uma catarse. Meu coração, eu sei por quê, bate feliz, quando te vê. E os meus olhos ficam sorrindo e pelas ruas vão te seguindo. Mas, mesmo assim, foges de mim. Ah, se tu soubesses, como eu sou tão carinhosa, e o muito, muito que te quero? Ao cantar esses versos de Pixinguinha, pensei no amor de viver, de acordar todo o dia, de respirar, de poder trabalhar, de ter saúde, de ter algo para comer, algo para contar, alguém a quem amar, e chegar em casa, ao final de uma viagem e abraçar tão forte e apertado a filha da gente como se uma década inteira tivesse se passado.


Cenas em que o silêncio nos mostra que a vida é bela. E que o tempo, ao mesmo tempo que nos envelhece, nos permite acumular. Assim, preciso mencionar que silenciei de emoção na segunda-feira, dia 26, ao fazer a cobertura da Semana do Idoso. Em determinado momento, aproximadamente mil idosos cantaram alegres, com as mãos enrugadas para cima batendo palmas, esbanjando alegria. Senhoras com mais de 60 com suas echarpes coloridas e seus colares de pérolas, senhores com suas gravatas cheirando a guardadas, alguns disfarçando a cor dos cabelos, outras exibindo a sabedoria que existe nos fios embranquecidos.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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