Porto Alegre, capital cultural?

Porto-alegrense de nascimento e também por opção, cresci considerando minha cidade um bom lugar para viver. Ainda penso assim, apesar dos pesares - que não são poucos. Meu bom relacionamento com a capital gaúcha, no entanto, nunca me impediu de ver seus problemas, feiuras, carências. Não estamos encravados em meio a um cenário natural exuberante, por exemplo, embora concorde que a combinação de morros, arborização abundante e o Guaíba com sua orla formem um conjunto belo e aprazível - sem esquecer de citar os muitos acertos arquitetônicos espalhados por nosso horizonte urbano. No entanto, mesmo os entusiastas do nosso célebre por do sol - entre os quais me incluo - devem admitir que Porto Alegre não é exatamente uma paisagem arrebatadora. Não temos mar nem serra, floresta ou cânion, neve ou praia. Sempre me perguntei, portanto, por que eu gostava tanto dessa cidade, para além das óbvias relações familiares e afetivas estabelecidas aqui ao longo da vida e das lembranças que ruas e endereços me suscitam. Para tentar responder, fazia o exercício de me imaginar um estrangeiro chegando a Porto Alegre: o que esse lugar tem a me oferecer? A conclusão era sempre a mesma - e servia tanto para mim quanto para o forasteiro hipotético: cultura.

Porto Alegre é uma das capitais culturais do país - e disso sempre me orgulhei. Acostumei-me a ouvir de brasileiros de outras paragens que o gaúcho em geral e o porto-alegrense em particular têm um nível cultural "diferenciado", que somos educados, politizados e lemos muito mais do que a média de nossos conterrâneos. Verdade ou mistificação, essa imagem efetivamente assentava-se em realidades e fatos concretos: o Fórum Social Mundial e a Fundação Iberê Camargo, a efervescência das artes locais e a vinda de shows e espetáculos nacionais e estrangeiros, o Teatro da Ospa e o Theatro São Pedro, a boemia e a gastronomia, o Renato Borghetti e o Nei Lisboa, o Luis Fernando Verissimo e o Jorge Furtado - já dá para o cidadão ficar faceiro, né? Para mim, sempre foi evidente como a Terra é redonda - isso é um fato científico, ok? - que Porto Alegre tem uma admirável vocação cultural e que isso a torna singular. Mais: a cultura é o que alimenta nossa autoestima e tem potencial para elevar a cidade e torná-la atraente também para quem é de fora, transformando-se até em um genuíno destino turístico gerador de emprego e renda locais.

Infelizmente, um ledo e ivo engano meu: o que para mim era cristalino, a saber, que apostar na cultura é uma grande cartada para deixarmos de ser mero entreposto de turistas a caminho de Gramado ou Buenos Aires, nunca pareceu tão claro assim para as autoridades e os poderosos aqui da província. Não digo que as secretarias de cultura e turismo, os empresários da área, a comunidade artística e cultural não venham se esforçando - mas falta que se escreva num quadro em palavras gigantes, como na canção do Luiz Melodia: CULTURA É A ALMA DO NEGÓCIO. A economia criativa - que  engloba cultura e turismo, entre outras atividades correlatas - é uma das principais forças motrizes do mercado e do desenvolvimento mundiais, movimentando cerca de US$ 8 trilhões por ano, com crescimento anual entre 10% e 20%. A despeito de uma incessante proliferação de iniciativas em prol da arte, da cultura e do lazer criativo e comunitário - que vão desde saraus literários à consolidação de um polo criativo no Quarto Distrito, passando por novos espaços para música, artes cênicas e visuais -, Porto Alegre não vestiu essa camiseta às ganhas.

No momento, aliás, não só deixamos de avançar como estamos retrocendendo: o desastrado e deplorável desfecho do caso "Queermuseu", com o Santander Cultural cedendo covardemente à pressão conservadora e encerrando a exposição semanas antes da data, divulgou-nos de forma lamentável pelo mundo todo e abriu um perigoso precedente à censura obscurantista. Soma-se ainda outros impasses que vêm golpeando nossa imagem de povo ilustrado, como a drástica restrição de abertura ao público da Fundação Iberê Camargo, a infindável novela da sede própria da Ospa, a incerteza quanto ao futuro da Usina do Gasômetro, o  Carnaval e a Bienal do Mercosul que quase não realizaram suas mais recentes edições, a Caixa Cultural que não fica pronta nunca.

Tudo isso é uma questão de dinheiro, claro, mas não só: com um pouco de visão pragmática menos preconceituosa, os governantes poderiam se dar conta de que é um baita negócio encampar uma estatégia agressiva no sentido de valorizar o pendor para o turismo cultural da cidade, que já foi indiscutivelmente a terceira capital nacional no setor - Belo Horizonte e Curitiba disputam agora com Porto Alegre esse posto. Cabe à sociedade civil, por outro lado, puxar as orelhas de quem elegeu no Executivo e no Legislativo para exigir que essa pulsação contemporânea da cidade seja levada a sério e encarada como um ativo valioso, contemplada com políticas públicas arrojadas - para o bem do nosso espírito e do nosso bolso.

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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