Prá frente Brasil

O dia tá feio, a lua não veio e o dinheiro não dá. Mas tem muito samba na concentração. Muita água no nosso feijão. …


O dia tá feio, a lua não veio e o dinheiro não dá. Mas tem muito samba na concentração. Muita água no nosso feijão. E tem muita Maria e muito João. Pensando bem, só assim mesmo que o povo brasileiro vai levando essa vida sem eira nem beira. É preciso ter muita coragem, muito jogo de cintura, muito estômago, ou a falta dele para não reclamar da ausência de comida, muita crença e joelho para rezar. Acreditar que um dia a história será novamente escrita pelo filho da Maria, que conseguiu estudar, e  usará as teclas do computador para narrar o que aconteceu com um viés mais realista. E que a filha de João ensinará, com um salário digno, as primeiras letras para o filho de Maria.


Até então, muita água vai rolar. E nem precisa ser cartomante ou vidente para sair fazendo essa profecia. Basta acompanhar as manchetes dos jornais e desanimar, um pouco, a cada notícia lida. O salário mínimo aumentou muito no governo do presidente Lula, em relação aos governos anteriores, é claro, mas ainda é tão insignificante que não consegue sobrar no final do mês para o trabalhador comprar uma máquina de calcular na loja de R$ 1,99 e planejar o seu orçamento. Ah, mas tem o mínimo regional, coisa de estado politizado. Só que maio tá chegando e a discussão sobre o seu valor não tem fim.


Vamos deixar de pensar em salário, em dinheiro, em consumo, em coisas materiais. Afinal, daqui não levamos nada, ok? Que tal aproveitar o sol do próximo feriadão e esticar as pernas, lagartear, comer laranja e sossegar em alguma praça de Porto Alegre? Tá bem, vamos dar um desconto que a colunista aqui viajou na maionese, tomou muito lexotan, ou esqueceu de tomar os anti-depressivos. Não, enlouqueceu de vez. Já tinha uma certa tendência. Pensar em andar, tranqüilamente, pelas praças de Porto Alegre, sem toda a Guarda Municipal de companhia, é pedir para, no mínimo, ser assaltada.


Mas, agora, que a Guarda Municipal poderá andar armada, quem sabe eu também poderei armar-me de coragem e retomar as minhas caminhadas diárias pelas ruas de Porto Alegre, onde há dias não ando. Há tanta esquina esquisita, tanta nuança de paredes (o poeta escreveu assim mesmo), há tanto moço bonito, nas ruas que tenho evitado. É um ato contínuo. Assim como evito a calçada defronte à Galeria Malcon, porque sempre imagino que um daqueles que me enfia os papéis de ouro, corte de cabelo por R$ 2,00 ou lingerie também poderá me roubar a carteira. Preconceituosa, não? Ele podia estar roubando, pedindo, mas ele está trabalhando.


Se é difícil fazer um passeio ao ar livre e enquanto os guardas não se armam, quem sabe um shopping e um cineminha? Admitam que a idéia é tão perfeita que muitos porto-alegrenses que também ficaram na cidade no feriadão da Páscoa penetraram no meu pensamento. E tinha fila para entrar na fila do estacionamento, fila para comprar ingresso para o cinema, fila para comprar pipoca, fila para o banheiro antes e depois do filme, fila na praça de alimentação. Como Deus é pai, não é padastro, as lojas estavam fechadas e assim não precisei entrar na fila para pagar o presente que, certamente, Gabriela Consumista Trezzi (minha filha) iria pedir.


O passeio simples e ingênuo ao shopping nosso de todo o dia também poderá trazer problemas. E, se de repente, não mais que de repente, eu tivesse que ir ao banheiro no meio do filme, deixando a Gabriela no cinema, e na volta, por puro esquecimento, voltasse para casa, sem a minha filha. É uma hipótese. Ao chegar no meu lar doce lar, devo confessar, que estranharia um pouco o silêncio. Ninguém me perguntando se pode ouvir aquele funk horrível. Ninguém me atrapalhando as idéias enquanto quero pensar em sugestões de pautas. Ninguém me  pedindo para comer o segundo ovo de chocolate em menos de uma hora. Muito estranho.


Não me atirem pedras e nem chamem o síndico. Jamais. E sei que jamais é uma palavra forte demais. Mas jamais esqueceria a minha filha em qualquer lugar desse mundo. Mesmo que necessite admitir que, às vezes, a paz do silêncio é um perfeito alimento da alma e tonificante da esperança. Que, às vezes, mais do que gostaria, tenho que falar em tom mais elevado com a pequena Gabriela para fazer valer meus mandamentos. Em outras vezes, penso se estou educando certo e se não vou me arrepender no futuro. Apesar das indecisões e incógnitas, não imagino como um pai ou uma mãe esquece um filho no shopping.


Enfim, este ainda é um País que vai prá frente. Muitos e muitos milhões em ação, prá frente Brasil, Salve a Seleção que é Penta. De repente, é aquele corrente, parece que não tem inflação, desemprego, miséria, falta de escola, injustiça social, desigualdade, insegurança, gente matando gente, pai esquecendo filho, filho sem ter o que comer. Todo o País dá a mão. O ano corre rápido em 90 minutos.  

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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