Precisamos sim falar na violência contra as mulheres

As desculpas esfarrapadas são as mais criativas possíveis porque criatividade é, sem dúvida, uma qualidade feminina. Uma escada no meio do caminho. Um tapete …

As desculpas esfarrapadas são as mais criativas possíveis porque criatividade é, sem dúvida, uma qualidade feminina. Uma escada no meio do caminho. Um tapete enrugado. Um escorregão no piso molhado. Uma porta do roupeiro que foi esquecida aberta. O cabo de uma panela que estava muito quente. Um brinquedo do filho deixado inadvertidamente no chão da sala. Por trás delas, aparecem mulheres com os olhos roxos, hematomas no corpo todo, bocas feridas, arranhões nos braços e visíveis marcas da violência de gênero que em pleno 2015 ainda é crescente no Brasil e no mundo. Apesar de todos os avanços. Porque nem todas as mulheres têm a coragem da biofarmacêutica Maria da Penha, que após sofrer constantes agressões do seu marido, um nobre professor universitário, lutou para que ele fosse condenado, no episódio conhecido, pela primeira vez na história deste País, como um crime de violência doméstica. Pois a partir daí, nasceu a Lei Maria da Penha, que reconhece a gravidade dos casos de violência doméstica.
Quando se fala em violência contra as mulheres, parece que existe um tabu, uma preocupação em se enfeitar os dados e que a agressão nunca aconteceu com a vizinha, a amiga, a prima, a empregada doméstica, a trabalhadora do comércio, a moradora de rua.  É só ver a polêmica criada pelo tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2015 que foi "A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira", que chegou a ser taxado como um assunto de esquerda e motivou declarações hilárias de representantes das alas mais radicais da sociedade. Mas ainda é preciso sim falar neste crime de gênero: a violência contra as mulheres. Pelo menos uma em cada três mulheres, ao redor do mundo, sofre algum tipo de violência durante sua vida. O Brasil é o país mais atingido com a violência doméstica, aponta pesquisa da Sociedade Mundial de Vitimologia (ligada ao governo da Holanda e à ONU), feita em 54 países com 138 mil mulheres. Na terra do Carnaval e do futebol, 23% das mulheres brasileiras estão sujeitas a este tipo de violência.
Não é mais possível calar e conviver pacificamente com o agressor e continuar arrumando mentiras para encobrir os atos de violência. Porque não foi uma trombada na escada que deixou os braços de muitas Marias machucados. Foi alguém de dentro da casa destas Marias, do sexo masculino, que cometeu tal violência. Basta de proteger o criminoso. No Brasil, a cada sete segundos uma mulher é agredida em seu próprio lar e 51% da população brasileira declaram conhecer ao menos uma mulher que é ou foi agredida pelo seu companheiro. A violência doméstica (escada no meio do caminho, tapete enrugado, escorregão no piso molhado, porta do roupeiro que foi esquecida aberta, cabo de uma panela que estava muito quente, brinquedo do filho deixado no chão da sala) é a principal causa de morte entre mulheres de 16 a 44 anos.
Vamos relembrar os dados. 8% das mulheres agredidas declaram que a violência aconteceu em sua própria residência. 3 em cada 5 mulheres jovens já sofreram violência em relacionamentos. 56% dos homens admitem que já cometeram algumas destas formas de agressão: xingou, empurrou, agrediu com palavras, deu tapa, deu soco, impediu de sair de casa, obrigou a fazer sexo. 77% das mulheres que relatam viver em situação de violência sofrem agressões semanal ou diariamente. Em mais de 80% dos casos, a violência foi cometida por homens com quem as vítimas têm ou tiveram algum vínculo afetivo: atuais ou ex-companheiros, cônjuges, namorados ou amantes das vítimas. Mais do que uma questão de saúde pública na pauta de qualquer governo, a violência contra as mulheres é um atentado à cidadania. Um crime hediondo de gênero. Um ato nojento de intolerância. Uma covardia sem limites.
Em 10 de dezembro, encerram-se os 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres, que ocorre em 160 países e começou em 25 de novembro, interligados em três datas. A de 25 de novembro é celebrada, em todo o mundo, como o Dia Internacional da Não-Violência contra a Mulher. Homenagem a três irmãs, Pátria, Minerva e Maria Teresa Mirabal (codinome Las Mariposas), ativistas políticas que se opuseram à ditadura de Rafael Leônidas Trujillo, na República Dominicana, e foram assassinadas nesse dia, em 1960, pelo regime ditatorial. O exemplo calou fundo nas mulheres latino-americanas e caribenhas. Reunidas no 1º Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, em Bogotá em 1981, elas alçaram a data do assassinato de Las Mariposas a Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta contra a Violência à Mulher. Os homens entraram nessa luta. O 6 de dezembro marca essa decisão. A data originou-se em 1989, quando o canadense Marc Lepine assassinou 14 mulheres em uma sala de aula em Montreal por não suportar que elas cursassem engenharia. Um grupo de homens respondeu decidindo combater esse tipo de violência. Criaram a Campanha do Laço Branco: Homens pelo Fim da Violência contra a Mulher. Em 2007, instituiu-se a data como Dia Nacional de Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres. E o encerramento, em 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Mais do que nunca é preciso colocar a boca no trombone. Dar queixa do agressor. Buscar ajuda. Denunciar a violência. Deixar de apanhar. Evitar a morte. Cessar o feminicídio, que é a morte de uma mulher decorrente de conflitos de gêneros, ou seja, pelo simples ato de ser mulher. Entre 1980 e 2010 foram assassinadas mais de 92 mil mulheres no Brasil, 43,7 mil somente na última década. O número de mortes neste período passou de 1.353 para 4.465, um aumento de 230%. Precisamos sim falar sobre a violência contra a mulher para colocar fim nas desculpas esfarrapadas.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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