Referendundum ? Armamento X Desarmamento.

E agora, mais um plebiscito em horário nobre. Parodiando Cazuza: esse já vem malhado antes de votar. Você decide. Pois esse Congresso, que năo …





















E agora, mais um plebiscito em horário nobre. Parodiando Cazuza: esse já vem malhado antes de votar. Você decide.


Pois esse Congresso, que n?o congraça nada consagrado pelo consenso do bom senso, empurra com a barriga todas as quest?es nacionais relevantes. Um Congresso com argumentos de grosso calibre e lobbies certeiros. Que nos imp?e a discuss?o sumária da comercializaç?o de armas em vez de propor demorada reflex?o sobre a fabricaç?o.


Daí o equilíbrio que mais assusta: aquele entre a falta de vigor das instituiç?es brasileiras e a fraqueza do Estado. A insegurança geral deixou de ser uma prova da falência administrativa para virar uma bandeira inquestionável, hasteada pela truculência.


Num país, como diz o Millôr, em que as Forças Armadas já est?o utilizando armas de uso exclusivo dos traficantes, n?o há como localizar com precis?o os furos deste referendo. Nada de mais embaixo, ou mais em cima; as perfuraç?es, como os interesses, v?o de alto a baixo.


Armar-se, individual ou coletivamente, é uma prerrogativa com trajetória única: matar ou morrer. A diferença estará, apenas, na quantidade de cadáveres. Coveiros ir?o fazer a sua opç?o no plebiscito baseados na mais dolorida perspectiva: o volume de trabalho que os espera.


Me defino como pacifista. Um cara armado apenas das palavras.


Com elas muito me defendo, seguido contra-ataco, raramente ataco. Fora desse arsenal inútil contra a beligerância física, sempre fui e serei sempre um desarmado. De intenç?es, de atos e de objetos, e assim morrerei - tomara que n?o vítima da ideologia que me entranha.

N?o, n?o sou corajoso, nem de Ghandi tenho um percentual que seja.


Sou apenas sereno diante do Inevitável no inevitável dia de amanh?.


Sim, também carrego medos. Alguns perturbadores, no peito; outros, insignificantes, no bolso. Porém, o medo que mais me atropela é o que tomou conta dessa maravilhosa terra: o medo social. É mais como um desatino populacional, ameaçadora desorientaç?o que amedronta por falta de um mínimo de certezas. Em matéria de pavores, o maior é n?o se saber pra onde se vai. Mas, n?o custa lembrar, nenhuma arma pode ser uma bússola.


Este ano, neste outubro, este paradoxo eletivo: seremos obrigados
a votar entre sim e n?o antes de termos saído da encruzilhada de opini?es que terminam, todas, em becos sem saída. E os votos ser?o decididos, finalmente, mais pela angústia da sobrevivência do que pela consciência civilizatória. Justamente a que seria a maior garantia de sobrevivermos como naç?o. E este referendo n?o garante nada, a n?o ser a manutenç?o das contradiç?es e das injustiças que matam as nossas mais antigas esperanças sociais.


No dia 23, mais que um dever, você tem um direito de escolha. Siga, por exemplo, o raciocínio do amigo Celso Schröder: teremos que decidir se somos um país de pessoas que abdicam do princípio de assassinar alguém, ou se assumimos o papel de eunucos que adoram afagar signos de virilidade prontos a disparar, como dizia o velho Freud.


Diante dessa urna imbecilizada pela simplificaç?o, tenho só uma alternativa nesse país sem alternativas: só posso escolher votar a favor. Entre morrer e matar - como assume a minha amiga Olga Pacheco e tantos outros sensatos dispersos - escolho morrer. N?o é uma convicç?o burra nem passiva, como poder?o concluir os discordantes, que sempre interpretam os pacíficos depressa demais. É crença prática e objetiva: se me armo, só aumento os perigos do meu próprio destino e ainda pioro a margem de risco do destino dos outros.


Armamento mata, desarmamento n?o.

É Primavera e eu nem notei.

Esse perfume na brisa é sem par:
há menos lixívia negra no ar?
Com o brilho das águas do rio apodrecido,
a poluiç?o ganhou maravilhoso colorido.


Esse clima da Natureza é fantástico:
ser?o os canteiros das flores de plástico?
Ou as aves que voam em debandadas,
a fazer ninhos nas árvores podadas?


Esse verde das ruas é encantador:
o musgo das sarjetas já desabrochou?
Frutas e verduras também deram vida,
Como se houvesse nelas novo pesticida!


Esse sol que vem cedinho nos iluminar:
quase faz esquecer a ameaça nuclear?
E os desertos crescendo ao nosso redor,
têm um n?o-se-quê de mal menor.


Essa estaç?o é toda feita de paz:
é mais suave a extinç?o dos animais?
E as pessoas matam com todo carinho,
os semelhantes que atravessam seu caminho.


É. É Primavera e eu n?o notei.
Como eu sou insensível!


(Publicado originalmente há mais de 20 anos.
Infelizmente n?o ficou nem um pouco desatualizado.)

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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