Revolucionários e Glutões

Por José Antônio Moraes de Oliveira

"Você não precisa de talheres

de prata para comer bem."

Paul Prudhomme

Contam os livros de história que a Revolução Francesa derrubou o absolutismo de Luís XVI, aboliu privilégios da monarquia, da aristocracia e do clero. E de uma forma indireta, quase na surdina, criou uma instituição que se propagaria pelo mundo civilizado de então e mudaria nosso modo de viver - o restaurante. E ironia da história (ou das estórias?) - pelas mãos dos revolucionários que adotaram o hábito burguês de comer bem, antes um prazer reservado à elite odiada e perseguida.

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O restaurante, tal como conhecemos hoje surgiu em Paris, inspirado nos hábitos do rei guilhotinado Luís XVI e de seu antecessor, o requintado Luís XV. Ambos se interessavam pela culinária e se permitiam ao luxo de manter cozinheiros pessoais. O próprio Luís XV frequentava a cozinha do palácio e preparava pratos em ocasiões especiais; dizem até que fazia excelentes petit-fours. E, como bem sabemos, os gostos dos poderosos são invejados e imitados. Príncipes e donos de títulos nobres passaram a imitar o monarca, contratando chefs famosos. E a finesse à mesa virou moda. Com o advento da Revolução Francesa, os chefs que trabalhavam nos palácios ficaram desempregados do dia para a noite. Seus patrões fugiram para a Inglaterra ou tiveram suas cabeças decepadas.

O movimento seguinte foi uma revolução dentro da revolução, quando os cozinheiros-sem-patrões abriram dezenas de restaurants, rotisseries, boulangeries e bistrots por toda Paris. Um dos pioneiros foi Robert, chef do Príncipe de Condé, que abriu as portas de seu Chez Robert. A dupla Barthélemy e Simon, ex-cozinheiros do Príncipe Conti, fundou o Frères Provençaux, enquanto que cozinhava para o Duque de Orleans inaugurou o Meot, onde os revolucionários festejaram a execução de Maria Antonieta na guilhotina.

No início, os clientes eram os camponeses e comerciantes vindos dos arredores de Paris, que queriam conhecer a novidade de "comer-fora-de-casa". A eles se juntaram intelectuais neorevolucionários e homens de negócios do Marais. A palavra restaurant apareceu pela primeira vez em 1765, na Rue des Poulies, próximo ao Louvre, poucos meses antes de eclodir a Revolução. Seu dono era um gordo marchand de caldos e cozidos de nome Boulanger. Para se diferenciar das tascas e tabernas  que ofereciam pernoite e pasto, ele atendia pessoas em busca de uma boa refeição. Para atrair a clientela, escreveu na porta, uma frase do Evangelho de São Mateus:

"Venite ad me, omnes qui stomacho laboratis et ego restaurabo vos."

Ou, em tradução livre, "Vinde a mim, aqueles que estão famintos e eu os restaurarei". O prato principal da casa era um Gigot d'agneau aux sauce blanche. M. Boulanger devia ser um bom marqueteiro, pois ficava à porta, anunciando em voz alta seu plat du jour. Vestia-se com uma suntuosa casaca, com um cordão de veludo vermelho no pescoço e espada à cintura. O sucesso foi imediato, provocando inveja e raiva nos colegas não dotados do mesmo senso de marketing.

A promessa em latim de M. Boulanger acabou servindo para identificar um tipo de estabelecimento. "Eu os restaurarei", em tradução livre de Ego restaurabo vos virou nome do negócio. Pouco tempo depois, em 1771, o Dictionnaire de Trévoux define restauranteur como aquele que administra um restaurante.

Já para o Larousse Gastronomique, a primeira casa que definiu o ramo foi o Grande Taverne de Londres, aberto em 1782, na Rue Richelieu, que tinha à frente Antoine Beauvilliers, chef do Conde de Provence, o futuro rei Luís XVIII. O lugar tinha garçons bem vestidos, menu impresso e uma respeitável adega. E durante duas décadas pontificou como um famoso e bem frequentado ponto de encontro de Paris. Brillat-Savarin, o notável gastrônomo escreveu que a multiplicação dos restaurantes parisienses fez com que a suntuosa e rica cozinha palaciana deixasse de ser privilégio da nobreza para se tornar acessível à todos que tivessem dinheiro para pagar a conta.

E na próxima vez que entrarmos em nosso restaurante favorito, talvez nos ocorra pedir o prato que deu início a tudo isso:

"Gigot d'agneau aux sauce blanche."

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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