Satânicos e visionários

A maior parte do que leio nos últimos tempos é jornalismo, quer dizer, pura merda, estupidez, trapaça, ainda por cima quase sempre muito mal escrita. Apenas a ânsia de tentar ter uma vaga noção do mundo em que vivo - sejamos otimistas, em que mal sobrevivo - me mantém nesse sacrifício diário.

Mas às vezes é preciso dar uma pausa - sair pra passear com o cachorro e ler alguém inteligente. É incrível como se pode esquecer como faz bem ler alguém inteligente, mesmo que ele esteja nos dando uma nova radiografia do horror que nos rodeia ou de que somos parte integrante.

Por isso reli De fato e de ficção, do Gore Vidal, seguido de Satânicos e visionários, do Aldous Huxley. Agora não tenho tempo de comentar nenhum dos livros, nem saberia por onde começar, porque é imensa a variedade de temas e há uma verdadeira enxurrada de dados culturais de muitas épocas e regiões. O mais sensato talvez fosse comentar apenas os ensaios de que gostei mais.

Por ora, e um pouco por preguiça, vou apenas citar um trecho de um dos ensaios do Huxley, 'O satanismo de Baudelaire'. Não lembro o que pensei na primeira vez que o li, porque eu tinha uns 18, talvez 19 anos, mas agora ficou claro por que não consigo me identificar com os personagens do Dostoievski, por que suas tragédias lá pelas tantas me fazem perder a paciência e até achar graça.

Em tempo: o título original do livro é Do what you will, mas a Companhia Editora Americana não achou suficientemente apelativo. De modo que muito trouxa em busca de misticismo ou superstições com ares científicos deve ter quebrado a cara. Bem feito. Huxley, além de escrever com clareza, argúcia e isenção, muitas vezes parte pro deboche mais agressivo.

Abrirei alguns parágrafos pra arejar o texto maciço do Huxley.

"O que acontece quando se permite à inteligência e à imaginação romperem por completo com o saudável controle do corpo e dos instintos está ilustrado, com força incomparável, por Dostoievski. Tome-se como exemplo Os demônios.

"Na totalidade desse romance horrível e extraordinário (e o mesmo é válido para todos os livros de Dostoievski) não há um único personagem que mantenha um relacionamento físico decente com qualquer outro ou com qualquer outra coisa. As pessoas de Dostoievski nem sequer comem normalmente, e muito menos fazem amor, trabalham ou desfrutam da natureza.

(...)

"Desembaraçadas do corpo, a inteligência e a imaginação tornam-se a um só tempo licenciosas e monomaníacas. E quando, afinal, sentiram-se impelidas a levar à prática as coisas loucas e desenfreadas que imaginaram - já que é impossível continuar fitando o próprio umbigo sem se acabar entediado - que aconteceu?

"Marcharam para o suicídio, para o crime, para o estupro, de acordo com a direção que suas monomanias tenham porventura tomado. Como tudo isso é trágico! Mas também como tudo isso é estúpido e grotesco!

"Se Stravrogin tivesse ido para a cama com as mulheres que desejava, em vez de dormir, por princípios satanicamente ascéticos, com as mulheres que ele detestava; se Kirillov tivesse tido uma esposa e um emprego decente; se Pyotr Stepanavitch tivesse algum dia olhado com prazer para uma paisagem ou brincado com um gatinho - nenhuma daquelas tragédias, daquelas tragédias fundamentalmente ridículas e idiotas, teria acontecido.

"Os horrores que obscurecem Os demônios e outros romances de Dostoievski são tragédias de licenciosidade mental. Todos os personagens de Dostoievski (e desconfia-se que o próprio Dostoievski era um deles) têm espírito licencioso, completamente desvencilhados de seus corpos. São todos uns onanistas emocionais, comprazendo-se violentamente no vazio da imaginação.

"Vez por outra, eles se cansam da masturbação e tentam fazer contato com o mundo. Mas já perderam todo o senso de realidade, toda percepção dos valores humanos. E todas as tentativas de realizar na prática seus sonhos onanísticos resultam em catástrofe. É inevitável.

"Mas por mais angustiantes que elas possam ser (e Dostoievski não nos poupa de nada), essas tragédias são fundamentalmente ridículas e idiotas. São tragédias absurdas e desnecessárias de loucos por vontade própria. Sofremos em solidariedade, mas contra nossa vontade. Depois, somos obrigados a rir. Tais tragédias nada mais são que farsas estúpidas, levadas às últimas consequências.

"Robert Burns compreendeu isso muito bem; ele que, depois de Chaucer, foi o menos pretensioso e o menos agourento, o mais harmonioso e completamente humano de todos os poetas ingleses".

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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