Tanto João e tanta Maria

Queria escrever para vocês sobre os encontros que tive, nem sempre bem resolvidos, e que deixaram rastros por onde passo. Queria escrever para vocês …

Queria escrever para vocês sobre os encontros que tive, nem sempre bem resolvidos, e que deixaram rastros por onde passo. Queria escrever para vocês sobre as gargalhadas da minha filha, que diariamente me incentivam a renascer e reconstruir, e de como sou privilegiada ao partilhar com ela desses momentos. Queria escrever para vocês sobre a minha felicidade ao detectar o amadurecimento precoce da minha sobrinha e afilhada Camila. Queria, juro de verdade (e não estou cruzando os dedos atrás das costas, como a gente fazia quando era criança), somente escrever sobres coisas alegres e pueris, sem nada de amargura.


Mas não posso ser falsa e fingir que não estou vendo tanta injustiça e crueldade social neste mundo. Não devo, enquanto pessoa que tem um espaço semanal num veículo de comunicação para comunicadores, cegar meus olhos para o descaso rotineiro com a vida de tanto João e tanta Maria. E não venham me dizer que eles proliferam porque querem, valei-me Deus. Não seria politicamente correto, enquanto cidadã, conviver impunemente com o crescimento dos meninos e meninas sem rua nas ruas de Porto Alegre. Não seria ético, enquanto jornalista, dizer que está tudo muito bem, está tudo muito bom e seguir o baile.


O mais apropriado, mesmo que seja desolador e motive emails de internautas não concordando, é relatar, novamente, a cena triste que cruzou o meu caminho no sábado à tarde. Sim, porque essas cenas são tão rotineiras que já nem nos tocam mais, é preciso que elas nos atropelem, senão, fingimos que nem é conosco. No caminho de retorno de um shopping, onde fui comprar um blusão de lã para aquecer a minha Gabriela, uma família encolhia-se na esquina do Hospital Presidente Vargas, protegendo-se do frio avassalador do último dia de junho. Improvisado, num carrinho de supermercado, alguns restos de alimentos.


Nas caixas e caixotes de papelão, algumas roupas surradas que eles ganharam de alguém, que assim como essa que vos escreve, ou por comoção ou para diminuir a sua culpa, remexeu nos seus armários e roupeiros embutidos de mogno e encontrou algo que não mais usava. Cobrindo uma criança que dormia e batia queixo de frio, uma manta xadrez, daquelas que as lojas de departamentos vendem em prestações a perder de vista, e alguém achou por caridade doar para a  família. Na esquina de uma das ruas de Porto Alegre, a pobreza ainda sofria com a poluição dos carros, último tipo, que cruzavam pela residência da família.


E, depois, a gente (eu, você e todos os que tiveram a oportunidade de realizar algum tipo de escolha na vida) volta para a nossa casa e consegue dormir em paz? E, depois, a gente (eu, o empresário de sucesso e meia dúzia de abonados) volta para o "Lar Doce Lar", tranca as janelas e deixa lá fora toda essa tristeza e não faz nada? E, depois, como era sábado, a gente faz uma extensa lista do que comprar no supermercado, planeja um saboroso almoço para o domingo, bebe um nobre vinho ou um café com chantily, e acha que a vida que pulsa longe das nossas quatro paredes não nos influencia ?


Não estou livre de censura e também cometo os pequenos pecados mortais que nos assolam todo o dia. Não estou querendo culpar o mundo pelos descaminhos dos sem-teto, sem-comida, sem-alimento, sem-emprego e sem-dinheiro. Não desejo, em hipótese alguma, que outras pessoas vejam estas cenas, é um cenário que não precisa, por favor, fazer parte da esquina de cada habitante deste Porto não muito Alegre. Mas, volto a defender que gestos insignificantes para nós, que temos tudo, podem revelar-se gestos grandiosos para aqueles, que acampam nas esquinas da vida, porque não tem nada.


De migalha em migalha, podemos ser responsáveis por um prato farto de comida para quem nunca teve alimento. De grão em grão, podemos dar munição para quem nunca teve nada guardado preparar o pão. De agasalho em agasalho, podemos vestir, mesmo que a roupa não tenha mais etiqueta, aquele que nunca teve o que colocar em cima do corpo para espantar o frio. De gestos singelos de solidariedade, podemos produzir gargalhadas também nos filhos e filhas de tanto João e tanta Maria, e fazer a diferença.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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