Tchékhov: um gênio discreto

Quando penso no Anton Tchékhov, lembro sempre de Mário Quintana. Ele dizia que a gente lê um conto de Tchékhov e parece que não aconteceu nada, mas aconteceu, sim: aconteceu a vida. Aí está o primeiro sinal da dificuldade de falar de Tchékhov. A vida é um bicho tão informe que é um perigo. Se ela está de costas, o que fazem aqueles olhos ali e por que unhas na nuca? Talvez não seja um afago dela na tua cabeça e sim um bote, ou afago e bote ao mesmo tempo. Talvez a gente a esteja agarrando não pelos cabelos ou por uma perna ou pelos chifres, mas por algo menos nomeável. As possibilidades são vertigem.

Tchékhov nos leva a perguntas óbvias e inescapáveis. Se numa história parece não acontecer nada, ou acontece muito pouco, isso quer dizer que é uma história sem enredo ou com um desses enredos desconjuntados, cheios de becos sem saída e enganos estúpidos que a vida nos proporciona todos os dias, confere? Depois de um bom conto de Tchékhov fica mais evidente ainda que os autores de enredos intrincados ou mirabolantes apelam pros truques mais baixos pra nos prender a atenção. Tchékhov poderia repetir a frase de Stendhal: "Não quero, por meios artificiais, fascinar a alma do leitor".

Concordo com assobios e palmas. Mas então me pergunto: como, diabos, se faz isso?! A melhor resposta é A dama do cachorrinho ou O vermelho e o negro. Claro que no caso de Stendhal nossa atenção é fisgada de modo mais fácil - Stendhal tem senso de aventura, o que dá uma turbinada até a uma ida à pracinha pra tomar sol. Em poucas páginas, estamos na torcida. Com Tchékhov, em poucas páginas, estamos tão desorientados como os próprios personagens. É preciso alguma distância da adolescência pra ler Tchékhov direito.

Muitos autores, quando não são bons de enredos, tentam nos enganar com o texto. A baixaria de sempre, frases tão bonitinhas que nem sabem o que dizem (obrigado, Ivan Lessa) ou enroladas pra parecerem profundas. Mas Tchékhov não tem o que disfarçar. Ele não está nem aí pra enredos, ele quer é nos dar flagrantes das pessoas e suas pequenas ou grandes alegrias e tristezas. Como está seguro do que conta, não precisa enfeitar nem enrolar. É simples, preciso - e com a bênção da falta de qualquer impostura.

De lambujem, ele foge das ênfases e das exclamações. Onde um Dostoievski dá espetáculo, onde apela pros grandes gestos, até pro melodrama, Tchékhov é discreto. É como se dissesse que não se impressiona. A vida é assim mesmo, dolorosa, absurda, cômica. Pra que exagerar então? A mim a contenção de Tchékhov emociona mais e me leva a pensar que talvez Mario Puzo estivesse certo quando disse, ao comentar Os irmãos Karamazov, que os personagens de Dostoievski parecem italianos tentando parecer sérios.

Ele também não toma partido. Ele cria um personagem e esse personagem é quem pensa e age. O personagem toma partido, e Tchékhov fica livre pra criar outro personagem que pode agir e pensar de modo contrário. Esse é o partido de Tchékhov.

Parece tão fácil. Mas tente, meu caro, pra ver quanto custa uma merengada em dia de chuva.

A estepe é a primeira novela de Tchékhov, escrita quando ele tinha 28 anos. Quer dizer, desde cedo - desde muito cedo, na verdade - já estava definida a estratégia do escritor, sem falar na ousadia de topar a briga mais perigosa. Bom, não dá pra saber se se trata de uma escolha ou de aceitação da própria sina, ou uma mistura das duas. A juventude de Tchékhov não pesa tanto nessa questão, me parece, afinal o cara era gênio.

Dickens, por exemplo, era um autor esplêndido de episódios. Mas pelo visto achava isso pouco - se matava tentando amarrar tudo em grandes enredos. O que teria acontecido se tivesse aceitado a natureza de seu talento e o levado às últimas consequências? Tchékhov fez isso e deu no que deu.

A estepe conta a viagem de um menino que vai estudar numa cidade maior. Só isso. A paisagem russa, os companheiros de viagens, os pequenos incidentes, o medo do menino sufocado ao fundo. Eu, que costumo pular descrições, segui linha a linha as observações sobre a estepe. Em algum momento comecei a sentir a presença física daquela mesmice, daquele horizonte sempre distante, do tédio da viagem. Mesmo viciado em narrativas aceleradas, aceitei o jogo de Tchékhov - acho que meio agradecido pela experiência e meio ressentido por ser dobrado por ele com tamanha facilidade.

Quando Tchékhov morreu - sacanagem, aos 44 anos -, Tolstói disse: "Acho que Tchékhov criou novas, absolutamente novas formas de literatura que não encontrei em parte alguma. Deixando de lado falsas modéstias, afirmo que Tchékhov está muito acima de mim". Ninguém levou a sério e descontaram na cortesia do velho conde, a essa altura um monumento que se sabia monumento. Pena que, tanto tempo depois, muita gente ainda não lê os dois com a distância necessária.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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