Um adolescente do barulho*

São conhecidos os gênios precoces na música e na pintura. Casos extremos: Mozart, Picasso. Há outros quase extremos, como Toulouse-Lautrec, de quem sou fã de carteirinha - basta ver quadros pintados por ele pelos dez anos de idade. Na poesia a coisa se complica. Não sei se é ignorância minha, mas não conheço nenhum grande poeta que tenha quebrado a banca antes dos dez anos ou pouco depois. Rimbaud, aluno brilhante aos quinze, precisou de mais um tempinho pra suas grandes obras.

Agora, a pergunta fatal: quem são os gênios precoces no romance? Vamos dar uma olhada no currículo de alguns clássicos. Stendhal escreveu O vermelho e o negro com 47 anos. Dostoievski fez uma boa estreia aos 25, com Gente pobre, mas não vamos esquecer que Os irmãos Karamazov saiu quando ele tinha 60. Tolstoi? Tinha 41 ao fechar Guerra e paz. Turguêniev: Pais e filhos (44) e Primeiro amor (63). Deu pra sentir o pepino?

O romance, além de exigir talento, exige experiência, tipo saber quem são as pessoas, como é o mundo em que vivem. Na hora em que o escritor precisa entrar nos detalhes, não há sensibilidade, imaginação ou força expressiva que possa suprir esse conhecimento básico.

Toda essa conversa é pra falar de Raymond Radiguet.

Acho que não dá pra chamar Radiguet de gênio, mas como um menino de dezessete anos escreve O diabo no corpo (Penguin & Companhia das Letras, 2013)? Num mundo em que a maioria das pessoas morre sem se tornar adulta de verdade, ele é um exemplo luminoso.

Sim, ele partiu de uma situação autobiográfica, seu caso, aos catorze anos, com uma mulher casada, dez anos mais velha. Isso proporciona alguma base. Só. Não explica o poder de ver o que viveu com distanciamento, de tratar a si mesmo como um personagem - tratar com imparcialidade, sem se defender ou posar de herói ou de simpático. Mais: tratar com sagacidade psicológica.

Não se pense que exagero.

"A decência pode se combinar com os sentimentos mais vis." É coisa de um menino, ao comentar uma atitude da mãe?

Ou esta cena do garoto com a amante, no trem:

"O vagão não tinha luz nem calefação. Marthe encostava a cabeça no vidro úmido. Eu estava envergonhado, e sofria ao pensar como Jacques, sempre tão terno, merecia bem mais seu amor do que eu".

Mas meu exemplo preferido é a festa no fim da Primeira Grande Guerra.

"Para mim, o armistício significava o retorno de Jacques. Eu já o via à cabeceira de Marthe, sem que eu pudesse fazer nada. Eu estava perdido.

"Meu pai ia de novo a Paris. Queria que eu o acompanhasse: 'Não se perde uma festa dessas'. Não ousei recusar. Receava parecer um monstro. E não me desagradava, em meu frenesi de desgosto, ver a alegria dos outros.

"Confesso que não me atraiu muito. Eu me sentia o único capaz de experimentar os sentimentos que atribuíamos à multidão. Procurava pelo patriotismo. Mas, quem sabe de modo injusto, via apenas o contentamento de um feriado inesperado: cafés abertos até tarde, os soldados podendo beijar as caixeiras. Esse espetáculo, que eu esperava que me angustiasse, que me causasse inveja, ou mesmo que me distraísse pelo contágio de um sentimento sublime, me entediou como a uma solteirona."

Não é demais? Conheço vários romancistas quarentões incapazes da acuidade desses parágrafos. O que me lembra que Radiguet morreu aos vinte anos. Não é estúpido? Mas, como dizia uma velha senhora num episódio de Law & Order, a vida não é justa nem injusta, apenas movimentada.

O caso, no romance, acaba de modo trágico. O caso verdadeiro, de modo banal. Não é um demérito pra Radiguet. A maioria dos escritores adultos optaria por essa saída. Só um Tchékhov teria peito de encarar a realidade a esse ponto.

*Perdão pela gíria antiga, mas não quis usar um palavrão. Acho que devemos ser moderados nos palavrões - pra eles não perderem impacto. Veja o que aconteceu com o puta que pariu. Hoje é uma exclamação genérica, sem poder nenhum de ofensa, e não dá pra dizer que foi o amor pelas mães que mudou. As palavras se gastam mais rápido que os fundilhos das calças dos funcionários públicos.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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