Uma janela no 132

"Existem inocentes com alma de culpados.

E culpados com alma de inocentes."

(Jules Maigret)

Por que amamos o Comissário Maigret? É um personagem muitas vezes rude, até grosseiro, com os que se atravessam em seu caminho. Bebe um pouco além da conta e está sempre com um de seus malcheirosos cachimbos à boca. Mesmo assim, não nos é possível ficar muito tempo distante de suas estórias, sempre ali perto, na prateleira de livros.

E, de tempos em tempos, voltamos à releitura de Pietr, o Letão, O Cão Amarelo ou outras das antigas novelas de Georges Simenon e que ajudaram a instalar o humanismo no romance policial do século XX.

Segundo Jean-Baptiste Baronian, biógrafo de Simenon, as historietas de Jules Maigret representam algo além disso - são uma permanente elegia à cidade de Paris, tal o detalhamento quase amoroso com que o escritor faz desfilar seu personagem nos boulevares, bistrots e quartiers da capital francesa.

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Talvez seja exatamente por isso que seus leitores compulsivos, quando chegam a Paris, sempre encontram um pretexto para dar uma passada diante do número 132 do Boulevard Richard-Lenoir. Ou, quando flanando pelo Quai des Orfévres, examinam com disfarçada atenção as escadarias do Palais de Justice, na remota esperança de avistar o garçom da Brasserie Dauphine chegar com uma bandeja repleta de sanduiches e cervejas da Alsácia.

Seja por estas e por outras que Jules Maigret é um personagem real no imaginário urbano de Paris, assim como Sherlock Holmes não pode ser dissociado do East End e da Baker Street. Mas, afinal, qual é exatamente o encanto do personagem criado por Simenon? E por que o admiramos tanto? Ele não teve uma carreira policial das mais brilhantes, os casos que resolveu estão longe de ser considerados causes célebres e os marginais que prendeu não figuram entre os gênios do crime. Mas, então, qual seria o motivo de tamanho envolvimento dos leitores de Simenon com esta figura, que tem lugar cativo na galeria dos grandes detetives ficcionais há quase 90 anos?

Foi em 1929 que se registra a primeira aparição do Inspetor Maigret - ainda como personagem secundário - em Pietr, o Letão. Na sequência, chega às livrarias uma longa série de novelas, em formato de Livre de Poche, começando com O Falecido Monsieur Gallet. Em 1932, O Caso Saint-Fiacre se esgota em dias. O sucesso continua na versão para o inglês, Maigret vai para casa provoca uma reação inesperada do outro lado do Canal, o que leva Simenon a escrever O Retorno de Maigret. Produzindo em ritmo frenético (cerca de 80 páginas por dia), o escritor franco-belga publica entre 1923 e 1933, mais de 420 livros, sob 16 pseudônimos diferentes. No entanto, foram as 103 novelas e contos com Maigret que ele alcança a celebridade mundial, vendendo 600 milhões de exemplares em 50 idiomas.

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Ao contrário da maioria de seus colegas detetives, Jules Maigret não usa dedução lógica para resolver os casos que chegam ao Quai des Orfévres. Ele se vale da psicologia e da intuição, sempre aliadas a uma inesgotável (e às vezes irritante) paciência. Longe de odiar o criminoso, procura compreender os motivos que o levaram ao crime e, uma vez solucionado o mistério, mostra quase a mesma compaixão pelo criminoso, como por suas vítimas. Nos casos mais intrincados, Maigret tenta primeiro saber por que o crime aconteceu, interroga os suspeitos para entender como eles pensam e vivem, seu caminho para chegar à raiz do problema. E, mesmo quando obtém a confissão do criminoso e o entrega à justiça, ele raramente o condena. Em alguns casos, intimamente o absolve.

Talvez seja esta humanidade de Maigret, suas manias tão semelhantes às nossas e sua inabalável fé nas pessoas que o tornam tão real e vivo em nossas fantasias. Podemos até entender como o leitor assíduo e conhecedor dos hábitos do Comissário e de Madame Maigret se poste diante do número 132 no Boulevard Richard-Lenoir. Ali, depois de algum tempo, ao olhar para certa janela, avista um vulto rotundo que solta uma baforada de fumo azulado, enquanto aguarda a hora de seu jantar.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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