Uma nova chance na vida

Na noite de 31 de março de 1964, eu subia a Borges de Medeiros, quando próximo do cinema Vitória encontro o Aníbal Damasceno Ferreira, do qual eu seria depois colega, como professor na Famecos/PUC, mas que na época era apenas um dos muitos conhecidos das conversas da Rua da Praia, o primeiro a me dar a notícia:

- Minas se rebelou e quer se separar do Brasil.

O golpe tinha começado, mas todos nós imaginávamos que seria mais uma quartelada como tantas outras e que não ia durar muito.

Lembro um comentário do Ibsen Pinheiro, na época apenas um talentoso jornalista.

- Quando isso terminar, vamos processar esses caras, usando contra eles todas as leis possíveis, inclusive a "lei do silêncio".

Fiquei imaginando aqueles generais do golpe num tribunal, acusados de perturbar o silêncio depois das 10 horas da noite.

Mas, como cantava Elis na música do Belchior, os tempos tinham mudado.

"Cuidado meu bem/ Há perigo na esquina/ Eles venceram / E o sinal está fechado para nós que somos jovens."

Muitos dos amigos que conheci no Julinho, na Filosofia da Ufrgs, e mesmo na Rua da Praia, se organizaram para a resistência.

Alguns, os mais corajosos, pegaram em armas contra os opressores.

Eu fui cauteloso. Eu me preservei para sobreviver e não me orgulho disso.

Quando você vê a foto da jovem Dilma Roussef enfrentando sem se intimidar um dos tribunais de inquisição que se formaram na época pelo Brasil, desafiando aqueles militares envergonhados, é que se dá conta da oportunidade perdida.

Eram tempos de enfrentamento, mas muitos de nós - acho que a maioria - não fomos para o campo de batalha.

Cantávamos aquela música do Geraldo Vandré, mas não aceitamos seu convite para lutar de verdade.

"Vem, vamos embora que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora / não espera acontecer."

De jovens que éramos, nos transformamos em pessoas maduras e, depois, fomos envelhecendo pouco a pouco, sem grandes riscos, cuidando da saúde, da família, da conta no banco.

Falávamos em cochichos entre outros iguais, cuidando para que não fôssemos ouvidos pelo inimigo.

Quem disse como eram esses dias, foi Ivan Lins:

"Perdoem a cara amarrada / Perdoem a falta de abraço / Perdoem a falta de espaço / Os dias eram assim"

Um dia, 21 anos depois daquele encontro na Borges de Medeiros, comemoramos o retorno à liberdade, sem que tivéssemos feito algo para merecê-la.

Outros fizeram por nós.

Agora, 30 anos depois, nos ameaçam novamente com a supressão dessa liberdade.

O inimigo, hoje, é mais dissimulado, mais perigoso. Não usa mais a farda para nos intimidar. Usa toga e tem muito espaço nos meios de comunicação para nos falar de um mundo em que não queremos viver.

Um mundo de negócios, de competidores e não um mundo de solidariedade com o qual sempre sonhamos.

Muito dos que perderam em 1964 não estão mais vivos, outros trocaram de lado, mas nós, os poucos que ainda não esqueceram a oportunidade perdida, o que vamos fazer?

É uma nova e derradeira chance que a vida nos dá.

Vamos desperdiçá-la outra vez?

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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