Vítimas e algozes

Por Marino Boeira

Falar sozinho não é só coisa de louco. Você pode aprender muita coisa dialogando honestamente e sem preconceitos, com seu alter ego.

Outro dia, por exemplo, falando comigo mesmo, perguntei:

 - O que pode ser considerado hoje como a coisa mais politicamente incorreta?

Eu mesmo respondi:

- Obviamente a homofobia.

- Mais do que isso.

- Mais do que homofobia, é muito difícil que haja alguma coisa.

- Mais!

- Quem sabe achar ridículo aquele sujeito que sobe numa árvore para protestar contra o corte que vai permitir construir uma avenida, mas não move uma palha quando o especulador imobiliário derruba uma centena de casebres para construir um espigão?

- Mais do que isso.

- Mais?

- Mais!

- Não sei.

- Falar mal dos ciclistas.

- Mas, por que alguém falaria mal dos ciclistas?

- Viu só!  Você (eu) ficou espantado com essa possibilidade. Os ciclistas são hoje os queridinhos da mídia e como você (eu) sabe, a mídia faz a cabeça de todo o mundo.

- Continuo não entendendo qual o problema com os ciclistas.

- Em vez de fazer as tais ciclovias, que vão a lugar algum, a prefeitura poderia usar o dinheiro para melhorar a vida desse pessoal que vive na periferia da cidade.

- Então, é uma questão de classe social?

- É isso também. Quem anda de bicicleta é a classe média. Pobre anda de ônibus, que, por sinal, continua caro.

- Mas, esse pessoal que protestou contra o aumento dos ônibus não é classe média?

- É meio confuso mesmo. Pobre que anda de ônibus não protesta contra o aumento das tarifas e a classe média que anda de bicicleta, protesta.

- Está bem, você (eu) é contra os ciclistas por causa das ciclovias?

- Não. Sou até a favor.

- Explica que não estou entendendo.

- Os ciclistas eram vítimas desses motoristas enlouquecidos que não respeitam nada, que se acham donos das ruas, que vão atropelando todo o mundo, inclusive, quem anda de bicicleta.

- Então?

- Então, começaram a dizer que os ciclistas eram as grandes vítimas e que precisavam ser protegidos.

- Errado?

- Não, certo.

- Então?

- Então, eles agora não andam mais nas ruas para não serem atropelados pelos motoristas enlouquecidos. Andam nas calçadas, atropelando os pedestres desavisados.

- Passaram, então, de vítimas a algozes.

- Não são apenas crianças que os pais recomendam, com razão, que não andem pelas ruas com suas bicicletas. São homens e mulheres que pedalam disputando o espaço na calçada, que, por lei, deveria ser só dos pedestres. Não sei se ainda se usa a expressão - mangolão - mas você encontra exemplares desse tipo vindos na sua direção, e, se você não cair fora, vai ser abalroado.

- No dicionário informal do Google, "mangolão" é sujeito muito chato, embora também registre que "mangolão" é um cara com o pênis avantajado.

- Pra mim, "mangolão" é o sujeito grande, desajeitado, que ocupa um lugar maior que seu corpo, principalmente quando anda de bicicleta na calçada.

- E o tal "mangolão" não pede desculpa quando invade o espaço do pedestre com sua bicicleta?

- Que nada. Ele acha que você é que está errado, que deveria ficar em casa em vez de andar na calçada. 

- O que você pretende fazer?

- Vamos publicar nosso protesto no Coletiva.net  e esperar que as autoridades não façam nada, mais uma vez.

- E como vamos assinar?

Marino Boeira e seu alter ego, pedestres.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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