Léo Guerreiro: O fotógrafo pintor

Aos 84 anos e mais de meio século dedicado à fotografia, Léo Guerreiro tem em seus negativos boa parte da história do Rio Grande do Sul

Por Karine Viana - 01/11/2013


Com a certeza de não ter podido fazer na vida outra coisa senão a fotografia, Léo Guerreiro dá uma grande contribuição à história do Rio Grande do Sul pois, através de seus negativos, congelou em preto e branco e a cores fatos e momentos de valores hoje inestimáveis. Esta sua fotografia registra como poucos a diversidade e a riqueza da cultura gaúcha. Guerreiro tem entre suas virtudes a de lidar minuciosamente com seus retratos, da escolha do melhor ângulo à luz perfeita e ao equipamento adequado, o que o faz ?desenhar? suas fotografias. O fato de ser o decano dos fotógrafos gaúchos não o impediu de evoluir com a tecnologia, trocando a forma artesanal de restauração de imagens pela utilização de programas de edição. Mas ao observar o pequeno estúdio que mantém no prédio quase centenário da ARI (Associação Riograndense de Imprensa), é possível confirmar: Guerreiro ainda mantém as características de um típico retratista tradicional.
Para este senhor de 84 anos, respeitável muito mais por sua forma amável e gentil de se relacionar do que à própria idade, a atividade iniciada em 1951 só poderia ser mesmo a fotografia. "Não gosto nem de pensar nisso!", assegura, com uma das maiores convicções demonstradas entre uma palavra e outra. Enquanto busca remontar a história de sua vida, sorri ao justificar a falta de algumas lembranças. "Sabe quando eu nasci? Em 6 de março de 1929", faz questão de frisar.
Do fotoclube às reportagens
A precisão de datas nem sempre faz parte das conversas de Guerreiro, mas ele lembra que foi em março de 1951 que iniciou seu contato com a arte de fixar para sempre uma imagem com o auxílio da luz. Na época, foi convidado por um primo engenheiro para participar da reunião que criaria o Foto Cine Clube Gaúcho, cuja primeira reunião seria realizada na sede do Instituto Brasileiro Norte-Americano. "Ele me deu o endereço e no dia da reunião eu tava lá, na primeira fila", revela. Acabou sendo um dos fundadores do clube e foi ali que desenvolveu seus primeiros dotes fotográficos, enriquecidos pelos debates gerados nas reuniões do grupo.
A primeira oportunidade profissional surgiu aos 22 anos, com um convite para fotografar para a revista Hoje. "Desde então, nunca mais larguei a fotografia", destaca Guerreiro. Deixou a publicação para fazer parte da equipe da Revista do Globo, onde permaneceu por mais seis anos como repórter-fotográfico, realizando principalmente retratos.
Nos anos 60, se deparou com um dos primeiros desafios da carreira, participar como fotógrafo da campanha política de Ildo Meneghetti. Terminada a eleição, Léo Guerreiro passou  a trabalhar na Divisão de Cultura do Estado, o que lhe permitiu viajar por todos os recantos e registrar tudo que era popular. O resultado é um acervo riquíssimo, formado por dezenas de fotografias da cultura gaúcha, dos pampas às Missões, além de raros registros obtidos em incursões aéreas pelos céus da Capital. Tudo está orgulhosamente guardado em seu implacável arquivo fotográfico.
Porto Alegre vista do alto
No Rio Grande do Sul, principalmente na Capital, o fotógrafo foi o número um em diversos segmentos. Pertenceu a Léo Guerreiro o maior acervo de fotografias aéreas de Porto Alegre. As primeiras imagens captadas do alto da cidade levavam seu crédito e registraram toda sua evolução entre as décadas de 50 e 80.
Hoje, os mais de 3,4 mil negativos que documentaram o desenvolvimento de Porto Alegre pertencem ao Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo. A venda foi realizada ainda na década de 90. Com a ideia de que o material deveria tornar-se público, o fotógrafo mostrou o conjunto de fotografias à secretária municipal de Cultura da época, Margerete Moraes, que teria afirmado: "Eu quero este material para o museu".
A entrega dos negativos culminou com uma exposição. No discurso de abertura, o então prefeito mencionou que achara elevado o valor pago pelo acervo. Anos depois, já deputado estadual, Raul Pont aproveitou uma homenagem da Assembleia Legislativa direcionada à Arfoc (Associação dos Repórteres Fotográficos e Cinematográficos do Rio Grande do Sul), na época presidida por Léo Guerreiro, para se redimir da afirmação feita anos antes. Na ocasião, pediu desculpas pelas colocações e reconheceu a importância do acervo para a cidade de Porto Alegre.
Notório saber
Entre 1971 e 1984, Léo Guerreiro viveu um dos períodos mais marcantes da sua trajetória pessoal e profissional. A Universidade Federal de Santa Maria precisava de um professor de fotografia, fato mencionado por um amigo e que chegou à sua casa já com a intimação de que, na segunda-feira seguinte, um caminhão da universidade estaria à espera do fotógrafo para levar toda sua mudança até a cidade central do Estado. Léo aceitou o desafio. Deixou a Capital no início dos anos 70 acompanhado da esposa, Ada, e dos filhos Elaine, Léo Júnior e Simone.
O fotógrafo, que não tinha curso superior, era mestre de si mesmo. Foi o conhecimento adquirido como autodidata que lhe proporcionou o título de Notório Saber, proposto pela UFSM. Na Universidade, participou da criação de três cursos: Comunicação Social, Comunicação Visual e Arquivologia. Foram longos anos lecionando fotografia nas manhãs, tardes e noites acadêmicas, além de uma dedicação que lhe rendeu uma homenagem com a Comenda do Mérito Universitário. Quem relata o agraciamento é a designer gráfica Simone Guerreiro, filha caçula do fotógrafo, que destaca o pai como a pessoa que mais lhe orgulha no mundo.
No período em que esteve em Santa Maria, um dos vestibulares foi anulado devido ao furto das provas, fato que obrigou a reprogramação em curto prazo de uma nova seleção. "Meu pai, sem hesitar, foi para dentro da gráfica da universidade e assumiu a responsabilidade da impressão de novas provas", destaca Simone. Ao término do vestibular, Léo Guerreiro apresentou um audiovisual, trabalho que o aproximou de Hélios Homero Bernardi, que fez questão de lhe prestar a homenagem.
Os retratos de Guerreiro
Aposentado e de volta a Porto Alegre, não parou de trabalhar. Comprou projetor e ampliador e passou a ministrar fotografia em diversas cidades do Estado. Como resultado da empreitada, conta hoje com cerca de 2,4 mil slides em que estão inseridas suas contribuições para o ensino da fotografia. No primeiro andar da ARI, construiu um pequeno laboratório que, com o que chama de fim da fotografia tradicional, cedeu espaço para um pequeno estúdio.
No espaço, nada de flash, suntuosas tochas de luz contínua ou equipamentos de última geração. Grandes retratos e belas imagens do Rio Grande do Sul ornam as paredes do pequeno local. E para a realização destas fotografias, minimamente compostas e de uma luz perfeita, nada mais do que simples equipamentos idealizados e construídos pelo próprio Léo Guerreiro. O canto da sala abriga uma pequena maleta, na qual cabem todos os equipamentos de iluminação, carregados pelo profissional até o local em que estiver o retratado. Sobre a opção, justifica: "O flash deixa a fotografia muito redonda, olha só como ficam os retratos com estas luzes", ensina, apontando para as imagens e identificando aquelas de que mais gosta.
Enquanto cita os personagens fotografados, relata a importância das técnicas de retrato, modalidade fotográfica que considera mais difícil. Fala das justificativas de composição à forma como se escolhe o lado fotogênico do fotografado. O conhecimento é fruto não só da experiência mas da quantidade de livros que leu, sendo as publicações do fotógrafo húngaro Kertész sua maior fonte de inspiração.
O que lhe deixa feliz
Muito antes dos softwares utilizados para edição de imagens, Guerreiro também foi pioneiro em Porto Alegre na arte de reconstituir velhas fotografias. Artesanalmente, recompunha imagens manchadas ou rasgadas. Às vezes partidas em dois, três e até cinco pedaços. Lentamente, mostra fotografia por fotografia, todas em preto e branco, invejavelmente bem dispostas num antigo álbum. De um lado, as imagens como chegavam ao seu laboratório, do outro, o resultado de um trabalho minucioso. A prática ainda é realizada. Agora, com o suporte do computador e seus diferentes programas para edição de imagens.
Em parceria com o fotógrafo Pedro Flores, alugou um porão na Avenida Independência, onde iniciaram a confecção dos chamados painéis fotográficos. "Era uma técnica desenvolvida por nós que chegava à dimensão de cinco metros por três, como aquele ali", lembra, enquanto aponta para um grande quadro exposto na parede do pequeno estúdio.
Para a filha Simone, viver da fotografia sempre fez Léo Guerreiro feliz. "Meu pai sempre viveu no meio artístico, meio da fotografia, dos jornais, das revistas e das agências de propaganda", lembra. Prova disso é que, desde a aposentadoria, em 1984, quando voltou de Santa Maria, nunca deixou de trabalhar. Durante todo o período, dezenas de câmeras fotográficas, entre elas três Rolleiflex, foram acumuladas. Hoje, todo equipamento está devidamente separado igualmente em três caixas. "Não tenho ideia do número de câmeras, mas no dia em que eu morrer, cada filho irá herdar uma caixa daquelas", revela.
Há alguns anos, um dos maiores prazeres do fotógrafo, e que se converteu numa espécie de ritual, é o café da manhã numa cafeteria da Rua Uruguai, no centro da Capital. Diariamente, vai até o escritório do sobrinho, lê os jornais e deixa um dos exemplares para ler no café, para onde segue por volta das 10h, a fim de reencontrar os amigos de profissão. "Esse é um dos seus maiores prazeres", confidencia Simone. Quando perguntado sobre o sentimento de realização na fotografia, Léo Guerreiro sorri e afirma: "O que eu quis fazer em fotografia, eu fiz. Tudo que imaginei fazer, eu fiz".
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