Lauro Hagemann: A voz

Comunista, mas da "outra escola", ele se considera um "ledor" e acha que para o jornalista só tem um caminho: ler muito, ler sempre.

Coletiva.net republica aqui o perfil de Lauro Hagemann, publicado originalmente em 5 de setembro de 2008. Um dos mais respeitados profissionais da Comunicação gaúcha, ele faleceu no último dia 11.

Lauro Hagemann no estúdio da Rádio Câmara | Crédito: Leonardo Contursi

Lauro Hagemann no estúdio da Rádio Câmara | Crédito: Leonardo Contursi


O homem que com fineza recebe para a entrevista, à porta do apartamento térreo, em uma tarde cinzenta, mantém a postura altiva que em nada denuncia os 78 anos que chegaram, em 23 de julho - "há milênios passados", como caçoa. A voz que por décadas trovejou nos rádios gaúchos - ela sim, "testemunha da História" deste e de outros mundos - continua intocada e natural como sempre foi, não tem nada de impostada. É de Lauro Hagemann que, hoje aposentado, não faz questão nenhuma de negar: tem saudades do rádio. E, com certeza, o rádio e os ouvintes têm muito mais saudade dele.
Sentado, se deixando embalar na cadeira larga, coberta por uma manta de tricô formada por quadrados em tons de terra e vermelho escuro, Lauro Hagemann começa a montar o mosaico de sua vida como quem conta um conto, pacientemente. E logo explica que o filho, que o assessora com a pasta cheia de fotos (pasta esta que veio da Rússia, por sinal), é um dos produtos das "duas ninhadas" que teve. Ri, francamente divertido. E vai rir, assim, durante as duas horas que se seguirão de conversa cujo roteiro de perguntas pré-estabelecido termina abandonado, em função do clima caseiro que se impõe à entrevista.
Lauro Hagemann continua firme em seus princípios ideológicos e políticos - é comunista, do PCB, desde que, ainda sem ter completado a maioridade, deixou os colégios luteranos e rígidos da Santa Cruz do Sul, cidade natal, para mergulhar no universo agitado do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o Julinho. "Meu modo de enxergar o mundo do trabalho continua o mesmo. Porque a mentalidade é a mesma, não vamos nos iludir. A luta continua para sempre! É o bem contra o mal!", avisa, determinado, convicto. Mesmo assim admite, candidamente, que tem saudades do rádio, em especial dos tempos em que foi o próprio Repórter Esso, o noticioso que é a fatia maior dos seus mais de 60 anos diante do microfone.
Nas idas e vindas da memória - da qual ele reclama, em especial em relação às datas -, o comunismo foi conseqüência natural para o jovem que atendeu a uma determinação da mãe (que só freqüentara aulas até o segundo ano primário, o ensino básico da época) para que ele, as duas irmãs e o outro irmão estudassem. Veio, então, para Porto Alegre, onde pretendia estudar Direito.
Para quem arregalou os olhos e a mente para as diferenças sociais que o Julinho e seu universo libertário escancaravam, lutar pela igualdade dava seqüência ao que aprendera em casa, com o pai, que, aos 18 anos entrara para uma fábrica e, mais tarde, fundaria o Sindicato da Alimentação em sua cidade.
"Minha sina foi dar organicidade às entidades estudantis e aos trabalhadores. Tive o senso de organização ao natural", afirma Lauro, que atribui ao acaso muitos dos acontecimentos de sua vida. Como o de ter se transformado em radialista, em homem de microfone. "Eu saí de Santa Cruz - um país muito amigo do Brasil - em 1949?, troça ele. Lá, ainda tem um quarto, na casa dos pais, conta, pedindo a foto da construção pintada de branco a Beto, o filho mais novo e único da segunda "ninhada". Também pede que ele exiba dois outros registros: a imagem da grande família, "tirada meio no laço", e outra, em branco e preto, exibindo os pais, vários familiares e ele, "o alemãozinho agachado na frente". Justifica: é para "a gurizada", um dia, cotejar os clãs, como ele fez com a velha foto dos ancestrais: "Nós viemos da elevada civilização do Rio Pardinho".
A pasta de fotos russa
Lauro lembra de cada foto reunida na pasta marrom de couro que ele trouxe da vez em que, orgulhosamente, esteve em Moscou. Lá está ele, em uma das pontas do grupo, destacado pela altura, bem agasalhado, diante do Kremlin, numa imagem que, segundo o filho, reuniu todos os comunistas do mundo, observação que lhe arranca uma gargalhada. Mas que não se brinque com as siglas: é PCB, jamais "a outra".
Política? Está total e completamente desencantado - expressão que joga na conversa com um gesto amplo, feito com as mãos. Nem os novéis comunistas o entusiasmam a ponto de duvidar que tenham lido os socialistas utópicos, como ele, ou que saibam o que é o solidarismo, a solidariedade classista que trouxe de berço, em especial da mãe.
Tanto está desiludido com as questões e as pessoas envolvidas na política atual que revela que um dos seus canais preferidos de televisão, hoje, é o canal pornográfico. Diz isso e, marotamente, espera a reação de quem ouve, antes de explicar, debochado, que é o apelido que deu ao canal da Câmara Municipal de Porto Alegre: "Tem cada vereador lá que vou te contar!" E revela que, numa das muitas vezes em que lá atuou, eleito pelo voto, junto com Adauto Vasconcellos e João Motta formou a bancada da anedota. Isso consistia em sentar em um canto e ficar criticando alguns colegas, como a moça que apelidaram de Maria Chorona.
"Conhece a Maria Chorona?", ele pergunta e logo responde: "Era uma vendedora de jornal que ficava na esquina da Rua da Ladeira com a Praça da Alfândega." E a tal então vereadora era a imagem da jornaleira que parecia choramingar a cada pregão do que vendia, segundo as lembranças de Lauro.
Sua visão dos políticos atuais não tem lugar para a complacência. Lula? "Faz o que tinha que fazer. Não é da dura vida". A dura vida, a que se refere, está lá, na base, em especial na leitura dos já citados socialistas utópicos que ele afirma não serem do conhecimento da garotada comunista de hoje. "Eu sou de outra escola", encerra.
Ler, o único caminho
Recorda, ainda, da vez em que Leonel Brizola veio a Porto Alegre para inaugurar uma réplica da placa da Cadeia da Legalidade no porão do Palácio Piratini, no começo do governo de Germano Rigotto. Lauro, a própria voz da rede de rádios que garantiu a posse de João Goulart na presidência da República, foi um dos convidados da cerimônia a que se seguiu um churrasco, no Parque da Harmonia. Ocasião em que Brizola o pegou pelo braço e com ele deu uma longa e fraterna caminhada. "A ciumeira dos políticos do PDT foi um horror", comenta, entristecido, para logo pedir outra foto, em que aparece, jovem, sentado ao lado do na época governador gaúcho, num dos salões do Piratini, pedindo dinheiro para um congresso sindical. "E ele deu", completa.
Outras fotos: com o compositor e escritor Mário Lago, comunista histórico como ele; outra, com mais quatro resistentes que, como ele, se formaram na segunda turma de Jornalismo, que era ligado à Faculdade de Filosofia da Ufrgs, todos eles de beca, solenes; com Walter Broda, com Adroaldo Guerra; com os filhos Lauro Luís (médico), Fernando (engenheiro), Celso (advogado), Ana Lúcia (professora), André (veterinário), todos do primeiro casamento, e Lauro Roberto, o caçula, único da segunda união da qual está viúvo e que ele classifica de "vendedor de conversa", por ter se formado como cientista político.
Sente saudades. Dos tempos de garoto, do estudo firme, dia inteiro, no colégio luterano, as aulas de latim e de francês. Agora, lamenta, as crianças nem aula de ginástica têm direito. Não só as crianças estudam mal. Entre os jornalistas, poucos sabem até sobre geografia, afirma. Ler, para ele, é a obrigação maior de quem quer ser jornalista. Sem ler, não tem condições de saber escolher e fica fácil ser manipulado, alerta.
"Sou um ledor, leio até o Almanaque da Saúde da Mulher", confessa, enquanto coloca sobre o sofá um exemplar do livro O Repórter Esso - A Síntese Radiofônica Mundial que Fez História, de Luciano Klöckner, obra para a qual deu seu depoimento. Aliás, Lauro anda muito requisitado: "Ando com uns sanapismos grudando em mim", brinca novamente, enquanto desliga o telefone em que atendeu mais alguém em busca de sua colaboração para uma nova obra, desta vez para uma gravação que fará em algum estúdio contando parte de sua história.
Relinchos com amigos
Hoje, Lauro Hagemann está em novo endereço, tão rodeado de atenção que, mesmo aparentemente reclamando que não se manda mais, mostra uma ponta de orgulho e satisfação pelos cuidados da prole. Sai pouco, porque, como explica, a cabeça está boa, os olhos estão renovados, mas as pernas andam meio travadas. Assim mesmo, quando encontra amigos, por aí, "dá uns relinchos" de satisfação. E, quem diria, o comunista convicto, do partidão, que perdeu emprego e foi perseguido por suas escolhas ideológicas, hoje espera a visita regular de uma amiga espírita com quem discute "essas questões".
Sobre isso ele vai contando enquanto acompanha o visitante até a saída do edifício, na rua silenciosa que se chama Maestro Mendanha. E não perde oportunidade: "Sabe quem é o maestro Mendanha?", inquire, olhando direto, nos olhos do interlocutor. "Pois ele é o autor do Hino Rio-grandense. Ele foi obrigado a compor enquanto estava preso pelos Farrapos, em Rio Pardo", complementa. Mais uma lição de Lauro Hagemann. De sua velha escola. A do conhecimento sincero e comprometido.

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