Ernani Ssó: Humor nas entrelinhas

O escritor que se define como "desenhista frustrado" mantém desde a sua infância uma verdadeira paixão por livros e histórias

Ernani Ssó - Reprodução

Ernani Ssó nasceu no dia 13 de agosto de 1953, na Serra gaúcha, na fria cidade de Bom Jesus. Nevava naquela tarde e, por este motivo, hoje ele costuma se definir como o "escritor que veio do frio". Filho de fazendeiros, as memórias da infância são as mais marcantes. Embora venha de uma família alfabetizada, a leitura não era um hábito comum naquela casa, mas foi o próprio pai quem se encarregou de gerar no menino uma paixão que o acompanharia pelo resto da vida: a paixão por histórias. O pequeno Ernani adorava ouvir o pai contar histórias, algumas como João e Maria, "a história de terror mais tenebrosa até hoje", costumava ouvir no rádio. Fosse antes de dormir ou mesmo nas horas vagas, sempre pedia para o pai repetir o relato.

Cresceu no campo e, longe das mordomias da vida urbana, só teve acesso aos livros na biblioteca da escola no primário. Suas professoras liam histórias da Bíblia e de Monteiro Lobato, as quais permaneciam vivazes na memória de Ernani por muitos dias. Empolgado, com 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho: A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoé (1719). Ao terminar a leitura do célebre romance do escritor e jornalista inglês Daniel Defoe, estava animadíssimo e decidiu que teria que escrever algo tão emocionante quanto o que acabara de ler. "Peguei uma folha e comecei a escrever. Não fui muito longe. Parei na terceira linha, mas o estrago já havia sido feito e, depois disso, não parei nunca mais."

Ainda empolgado com a descoberta da literatura, conheceu uma adaptação de Os Três Mosqueteiros, obra do romancista francês Alexandre Dumas. Definido por ele como "um dos livros de aventura mais perfeitos e engraçados que já vi", até hoje este ainda é um dos seus preferidos. "Este reli várias vezes, mas não é o mais relido. Nesse quesito Borges e Cortázar ganham fácil", conta.

Porto Alegre mais alegre

Aos 17 anos, mudou-se para Porto Alegre para terminar os estudos no colégio Julio de Castilhos. Sozinho na Capital, morou em um hotel e pensões até alugar um apartamento. Sua vocação sempre envolveu letras, pois dos números costumava fugir. "Naquela época, depois de concluir o Ginásio, optava-se entre os cursos Científico e Clássico e, como o Científico continha matérias como matemática e química, fiz o Clássico. Jamais tive uma aula de química na minha vida", diz aos risos.

O mesmo motivo que fez Ernani querer seguir a carreira jornalística também o levou a desistir do curso. "Sempre digo que entrei no Jornalismo para ser escritor e que, no ano seguinte, saí pelo mesmo motivo. Pensei que fosse trabalhar apenas seis horas e, desta forma, teria tempo para escrever." O seu primeiro emprego foi o de repórter no jornal Hoje, do agora Grupo RBS, e a decepção também veio com a primeira cobertura. Foi acompanhar a Festa do Chope no município de Feliz, trabalhou das 6h até tarde da noite e percebeu que, se prosseguisse com esta profissão, não teria tempo para se dedicar à carreira de escritor. "Fiquei menos de um mês lá. Me decepcionei e fui demitido por pura incompetência", conta.

Desenhista frustrado

Na adolescência, pensou em ser desenhista, arquiteto e até mesmo humorista. "Aos 18 anos resolvi que seria humorista, o que não tinha a menor graça! Eu era um leitor do Pasquim e achava que isto bastava", explica. Antes disso, desenhou dos seis aos 14 anos, mas começou a escrever e, aos poucos, foi abandonando o lápis. O fascínio por histórias e literatura fez com que a decisão de se tornar escritor se mantivesse firme.

No mesmo ano em que deixou o curso de Jornalismo da PUC, seu pai veio a falecer. "Herdei terras, gado, essas coisas, e fiz uma coisa completamente idiota, que não recomendo a ninguém: depois de uns cálculos, 'arrendei' tudo e descobri que tinha uma renda mínima; então, decidi que seria escritor. Quer dizer, num país de analfabetos, onde esta não é uma profissão regulamentada, não dá pra se manter com a atividade enquanto está aprendendo, pois, tem que ler muito, experimentar o texto.Vivia com uma ninharia, mas estava feliz, porque investia todo o meu tempo em ler, escrever e namorar. Quase nada mais me interessava. Quando a coisa apertava, eu fazia uns bicos."

Foi o que fez Ernani. Absorveu o máximo que pôde e os autores de sua formação foram lidos todos nessa época. A herança foi suficiente para mantê-lo por cerca de 10 anos e, além da boa matemática aplicada, ele credita a outro fator o fato de o dinheiro render: "sou um cara frugal!", brinca. Para ajudar na renda, fazia "bicos" como tradutor, editor, pesquisador do IBGE, sempre, é claro, preservando um tempo para escrever.

Estréia no humor

Sua estréia ocorreu em 1974, quando escreveu um texto para O Quadrão, coluna publicada na extinta Folha da Manhã e que fez história no jornalismo gaúcho nas décadas de 70 e 80. Hoje, registra mais de 20 livros publicados entre edições infantis, de humor, quadrinhos, romances e biografias. As obras já lhe renderam oito prêmios. Também registrou colaborações no Coojornal, Já, Pasquim e Zero Hora, entre muitos outros veículos.

Atualmente, é colunista de Coletiva.Net e está traduzindo um livro espanhol de educação, trabalhando em duas coleções infantis (uma com histórias de bruxas, para a Editora Paulinas, e uma com histórias de folclore, para a Cia das Letrinhas) e escrevendo um romance, que ele define como "uma espécie de conto de fadas para adultos." Ainda não tem previsão para finalizar e lançar a obra e está escrevendo devagar porque gosta de ir descobrindo aos poucos seus personagens. "Eu não invento. Eu descubro", diz.

Hoje, Ernani também se define como um desenhista frustrado e explica: "meu texto é muito visual. Escrevo e enxergo cenas, rostos, movimentos, entretanto não consigo desenhar!" Dessa época de artista, restaram telas felizmente perdidas e retratos vendidos, que geraram bons trocados para viajar de carona e passar o verão em Santa Catarina. 

Já escreveu inclusive uma peça de teatro, mas preferiu deixá-la no anonimato. Desconfiado com o que escreve, cita uma frase de Mario Quintana para se explicar: "devemos desconfiar de quando achamos que estamos escrevendo bem porque crime perfeito não deixa pistas." Prefere escrever para crianças, o que também acha mais difícil, e acredita que esse gosto se deve à proximidade e as experiências vividas na infância.

Um brigão cansado

É casado com a a psicopedagoga Laura Mota Hoppe e com ela tem um filho, Lúcio, de 19 anos. Está em seu segundo casamento, sendo que o primeiro durou quatro anos. O casal se conheceu durante uma aula de natação e a relação já dura duas décadas. "Nem acreditava que um casamento pudesse durar tanto tempo", diz.  Lúcio e o pai resolveram fazer uma parceria e traduzir juntos o romance A Flecha Negra, de Stevenson, mas o jovem gosta mesmo é de música. O autor orgulha-se de contar as habilidades do filho com instrumentos como flauta, teclado e guitarra.

Apesar de dedicar a maior parte de seu tempo aos livros, sua biblioteca não contém muitos títulos. "Acho fantástico essas pessoas que têm bibliotecas com 25 mil livros. Se o livro não me interessou e se não vou reler, logo descarto, dou para alguém. Quando conto isso para as pessoas, elas se espantam e dizem: "mas você escreve e joga os livros fora?" Hoje, cada vez mais sou um releitor do que um leitor", conta. Entre seus autores preferidos estão Raymond Chandler, Clarice Lispector, Mario Quintana, Miguel de Cervantes, Dalton Trevisan e Ítalo Svevo, entre outros.

Já foi um grande fã e freqüentador de cinema, mas por causa da "americanização" das telonas, opta por fazer outros programas, como cozinhar ou assistir seriados de TV como Os Simpsons e o Law & Order. Na cozinha - parte da casa pela qual é responsável - suas especialidades, preparadas com blues e jazz como trilha sonora, são feijoada, nhoque e linguado ao molho de vinagre.

Fã do Homem-Aranha e de programas culinários, Ernani não gosta muito de política. É um grande admirador do trabalho dos outros, mas dos bons, é claro. "Gosto de festejar o talento alheio porque vivemos da inteligência dos outros. Você não vive da mediocridade ou da burrice dos outros. O que te faz bem é justamente o talento das pessoas e você só vai assistir a um bom filme porque alguém talentoso fez! Tenho uma imensa dificuldade de festejar o que eu acho medíocre e isso sempre foi um problema", conta.

Ele, que já fez críticas literárias, diz ter arranjado desafetos por causa disso.

Sincero e irônico, conta que já se meteu em brigas por nada, somente pelo fato de gostar de discutir e de argumentar, "o que me trouxe muita dor de cabeça", afirma. Foi e continua muito brigão, mas hoje bastante cansado. "A primeira coisa que você descobre depois de duas ou três polêmicas é que aquilo não serviu para absolutamente nada! O camarada com quem você discutiu continua acreditando naquilo que acreditava antes e você, idem. Então, só aproveita e se diverte quem estava assistindo."

Quanto aos defeitos, diz: "Sou menos sociável do que gostaria. Era de uma ingenuidade a ponto de acreditar que bastava você aprender a escrever e que o livro aconteceria sozinho. Para publicar meu primeiro livro já foi um parto, porque não tinha os contatos certos, nunca fui muito de fazer social e talvez esse tenha sido meu principal defeito como pessoa e, talvez, escritor", revela.

Um franco-atirador. Assim se resume Ernani Ferreira da Fonseca Rosa. O nome Ernani é uma homenagem a um galã de rádio-novela e Ssó surgiu com uma brincadeira de colegas do tempo do Quadrão, ou para não ficar muito sozinho, como disse Quintana. "Sou uma pessoa alegre. Talvez meu melhor ângulo seja o bom humor, pois consigo encarar as coisas com certo humor, sem me levar muito a sério e, assim, acabo não levando os outros tão a sério. Isso ajuda a diminuir o drama do mundo."

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