Fabrício Carpinejar: O poeta das unhas pintadas

O autor de 14 livros, e vencedor de diversos prêmios de literatura, fala da infância, das mudanças na carreira e se diz naturalmente ridículo

"Cheguei", grita Fabrício Carpinejar do lado de fora de sua casa na Avenida Lageado, em Porto Alegre. Ele voltava da Unisinos, onde é coordenador do curso de Formação de Escritores e Agentes Literários e do curso de Formação de Músicos e Produtores de Rock. Acontece que estava atrasado havia uma hora para a entrevista e ainda precisava arrumar a mala para partir para Osasco, em São Paulo, onde cumpriria agenda de palestras. A conversa foi seguida de pausas para fumar, arrumar a mala, fazer café, receber a namorada. A mãe de Fabrício, a também poeta Maria Carpi, falava da sala: "Vê se pode, ele levou a jornalista para arrumar a mala". Ele explica: "Não sei parar quieto".
Terceiro de quatro irmãos, Fabrício define-se como "o filho incerto do canto da mesa", assunto que já foi tema de seus textos. Na infância, adorava quando as pessoas não o descobriam, assim teria mais tempo para fazer o que quisesse. "Exercitei bem as minhas maldades", conta. Nascido em Caxias do Sul, chegou em Porto Alegre com apenas dois anos. O pai, o também poeta Carlos Nejar, era procurador do Ministério Público e costumava mudar de cidade com frequência. Mas acabou parando em Porto Alegre, e o menino Fabrício cresceu jogando bola na rua do bairro Petrópolis, na Capital. Hoje com 36 anos, está de volta à casa de sua infância, após separar-se da segunda esposa, com quem esteve casado por 13 anos e com quem teve um filho, o Vicente, de sete anos.
Apaixonado pela paternidade, Fabrício também tem Mariana, 16 anos, fruto de seu primeiro casamento. Quando a filha nasceu, o autor trabalhava em casa e se encarregou de tomar conta da primogênita. "Cuidar da Mariana mudou totalmente meu jeito de escrever e ver a vida. Passei a me pautar pelo periférico", comenta. Os filhos parecem seguir o dom do pai. Vicente mantém blog com fotografias e comentários curiosos sobre bichos. Mariana escreve letras de música. "Meus filhos têm uma facilidade que não tive. Eu escrevia na máquina de escrever. É outra infância", observa.
O despertar para a escrita
Carpinejar escreveu o primeiro poema aos seis anos de idade. O texto foi uma homenagem para a avó, que acabara de falecer. "O poema é uma forma de luto, mas é um luto alegre. É quando a gente entende a separação. Na medida em que me despedi da minha avó, aceitei minha vocação. Talvez eu nunca escrevesse por mim", comenta. A reação dos pais foi natural. Em casa, o pensamento poético era fluente. "Era como se fosse um idioma", lembra. Para o escritor, o raciocínio poético é muito similar ao infantil. "Há uma inversão de ordem, uma aproximação de elementos díspares. A criança diz primeiro para pensar depois. Até hoje falo sem pensar. Não tenho filtros, sou naturalmente ridículo."
Mas foi na adolescência que Fabrício começou a disciplinar a escrita. O irmão mais velho era letrista de uma banda, e ele participava como penetra das discussões filosóficas. "Ficávamos até de madrugada conversando no escuro. Desde essa época, sei seguir uma voz." Em casa, aprendeu que a verdade é quem conta melhor. Passou a escrever para proteger a memória. "Em uma família de escritores, não precisava provar que inventei, tinha que provar que eu vivi", lembra. Sobre seu estilo, define: "Fiz o caminho inverso ao dos meus pais. Eles trabalham com a invenção, eu com a realidade".
Jornalismo pelo lado errado
Fabrício ingressou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) para cursar jornalismo porque queria escrever, mas se enganou. "Entrei na faculdade pelo motivo errado. A poesia no jornalismo é um vírus." Depois de perceber que tinha a tendência de querer aparecer mais do que o assunto que estava abordando, partiu para o mestrado em literatura, também na Ufrgs. "Tinha a ansiedade de adolescente para ser autor. Senti que era preciso fazer literatura na literatura e jornalismo no jornalismo e, assim, torná-los mais fortes", acredita.
Como jornalista teve passagem pela Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, Unisinos e TVE. Embora a literatura tenha mais espaço em sua vida hoje, ele ainda pratica a profissão, é colunista do jornal O Estado de S. Paulo e da revista Crescer, da Editora Abril. "Aprendi com o jornalismo que podemos encontrar uma grande matéria numa pequena pauta. Não existe pauta menor, existe falta de vontade", define.
As influências dos livros
Antes de publicar seu primeiro livro, Carpinejar colocou uma reunião de poemas no lixo. Ele havia levado o esboço da obra para a namorada ler. Como no dia seguinte ela não comentou nada, ele perguntou. Mas ela havia esquecido no táxi. O livro estava datilografado e não havia cópias. Mesmo tendo encontrado, resolveu deixar passar.
Suas cinco primeiras obras publicadas têm o mesmo personagem, o Avalor. Em 'Sombras do sol', Avalor procura um lugar seguro para guardar a morte, na sequência ele briga com Deus e o demite por justa causa. Segundo o autor, é um percurso de senhas e enigmas em que a pessoa vai se descobrindo. "O livro que o Paulo Coelho não teve paciência de escrever", comenta em tom de brincadeira. Avalor foi criado com base nas vivências e descobertas de Fabrício da infância à vida adulta. "É um romance em cinco livros", explica. A inspiração para escrever tudo isso, ele tira das conexões que faz a partir de suas leituras. 'Cem anos de solidão', de Gabriel Garcia Márquez, o gosto pela aventura de Jorge Luiz Borges e a obra de Ítalo Calvino são algumas de suas influências.
Dos poemas às crônicas
De 2003 para cá, o poeta tornou-se cronista, publicando o primeiro livro de crônicas. Também foi nesse ano que uniu seus sobrenomes. "Passei a assinar Carpinejar para não envergonhar a família", brinca. O autor credita essa mudança à maturidade que alcançou com o leitor. Fabrício prefere o simples ao sofisticado. Rastejar a voar. "Posso rastejar por uma mulher, por um amigo, por um diálogo. Isso não é um problema para mim, é uma virtude".
As mudanças são visíveis não só no estilo de texto, mas também no jeito de vestir do autor. Antes adepto de terno e gravata, hoje usa camisetas coloridas, cabelo raspado e pinta as unhas de uma das mãos de esmalte da cor escura. Quando criança tinha medo do que as pessoas podiam falar sobre sua aparência. Segundo ele, a vida adulta é uma revanche a isso. "Já que vocês querem falar sobre a minha aparência eu faço um banquete", declara.
A cabeça raspada tem a ver com seu trauma com a calvície.  Há três anos decidiu enfrentar. Hoje o salão onde ele corta os cabelos tem um concurso: "Faça a cabeça do Carpinejar". Na promoção, os concorrentes devem sugerir palavras que possam ser escritas com o cabelo que compõe o corte do poeta. O vencedor ganha um corte e um livro.
Já as unhas, ele explica que pintou pela primeira vez para não precisar lavar a louça. "Minha mulher sempre dizia que não podia lavar a louça porque tinha pintado as unhas. Um dia respondi: Eu também não". No início, ele pintou as duas mãos, mas percebeu que o filho ficava constrangido com isto. Os colegas de escola estavam comentando que quem pinta as unhas é mulher. Por isso, decidiu pintar uma mão só. Para o filho, falou: "Quem pinta uma mão é poeta". Agora, sempre que o pai apresenta um poeta à Vicente, a primeira coisa que ele procura é ver se o interlocutor tem mesmo as unhas pintadas.
Na literatura, a mudança pode ser percebida em 'O amor esquece de começar'. Reunião das crônicas publicadas em seu blog, foi o primeiro de seus livros do gênero. "Tive um começo muito lírico. 'Canalha!' Já tem a ver com a minha fase atual. É muito mais inconsequente." No livro, o autor tenta reparar a figura masculina. Segundo ele, hoje é preciso pedir desculpas por ser homem. 'Canalha!' foi a forma encontrada para lutar contra o preconceito.
Incompetência virtuosa
'A família não é uma empresa' é o próximo livro a ser lançado pelo autor ainda no segundo semestre deste ano. Na obra, ele compara sua infância com a dos filhos e defende a família como um lugar para falir. Além disso, ele está escrevendo outro livro de poemas. "Mas são poemas alegres, influência das crônicas", faz questão de esclarecer.
A rotina de viajar e dar aulas enche de prazer o autor, que leva a família a tiracolo sempre que pode. Lecionar na Unisinos, ministrar oficinas literárias e estar sempre viajando em palestras não lhe atrapalham no processo criativo. A inspiração surge no meio de tudo. Ele ainda mantém três blogs: o Consultório Poético, em que dá conselhos poéticos para apaixonados, o Rolo Compressor, onde o colorado escreve sobre futebol, e o seu próprio.
Como se já não tivesse muitas atividades, só no ano passado proferiu 150 palestras, agora ele vai fazer terapia literária. Publicou até um anúncio de classificados na internet, onde garante: "Devolvo a inspiração em dois meses". Segundo ele, o curso pretende trabalhar o desbloqueio criativo. Algo como dar alta para os personagens. Quando perguntado se teria outra profissão, é categórico: "Não tenho competência para outra profissão. O escritor é uma incompetência virtuosa. Ele pode ser tudo". Mas avisa que se tivesse que trabalhar de qualquer outra coisa para sustentar a família, não teria vergonha. "Sou um recursos humanos pronto".
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