Tania Jamardo Faillace: Do Beco da Velha

Ela escreveu matérias polêmicas e comprou brigas com autoridades. Difícil acreditar que sua carreira começou na coluna "Correio do Coração".

Nascida em 1939, "ano em que começou a Segunda Grande Guerra" - como ela faz questão de lembrar -, Tania Jamardo Faillace enfrentou muitas batalhas ao longo desses 68 anos, tanto na vida pessoal como na profissional. A carreira jornalística dessa porto-alegrense começou em 1966, "via Literatura", explica. Seus dois primeiros livros, "Fuga" e "Adão e Eva", foram bem recebidos pela crítica, o que lhe rendeu o convite para assinar uma coluna de conselhos sentimentais em Zero Hora , o Correio do Coração. "Mas era uma coluna não-ortodoxa. Realmente, não era água-com-açúcar, não? Fazia muito sucesso", conta. Assim, logo lhe ofereceram outro desafio: integrar a equipe de reportagens de Geral.


Cabeças rolando


Para aceitar a proposta, Tania teve que deixar seu emprego de secretária bilíngüe no Lanifício Sul-riograndense, as Lãs Pingüim. "Porque a coluna eu fazia em casa, de noite", justifica. Entre as matérias que realizou para Zero Hora, Tania destaca a primeira cobertura em território nacional sobre a tortura no regime autoritário: "Foi o caso das "Mãos Amarradas", assassinato, pela polícia política, do sargento Raimundo, do Grupo dos Onze, na Ilha do Presídio. Os anos de chumbo e a prática da reportagem em Geral e Polícia me foram fundamentais para entender nosso micro e macrocosmo social, e, inclusive, para embasar as opiniões e práticas políticas", diz. Mas toda essa consciência social acabaria por levar à sua demissão, dois anos mais tarde.


A jornalista resistiu firme em Zero Hora , mesmo tendo sido proibida de falar com estudantes e sindicalistas, até 1968, ano em que ocorreu o congresso da UNE (União Nacional de Estudantes) e foi decretado o Ato Institucional 5. "O jornal era um antro de espionagem, tinha gente ligada ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social) trabalhando lá dentro. E a gente fazia contrabando de informações, evidentemente. Éramos um grupo muito bom, muito unido, de vez em quando demitiam um, demitiam outro, para ver se desmanchava aquilo", lembra. Mesmo mantendo contato com suas fontes proibidas e desacatando qualquer ordem da direção - "O proprietário tinha medo da Redação, passava de fininho pela gente", garante -, a demissão de Tania resultou do que ela chama de "problema mais de ordem funcional": não-pagamento de salários. "Estávamos na véspera de Natal e ninguém tinha recebido o salário de novembro. Fizemos greve-tartaruga, cabeças começaram a rolar e a minha foi a primeira", conta.


"Após receber uma série de ameaças de que seria denunciada aos órgãos de repressão, ficou bastante difícil de trabalhar em Porto Alegre ", rememora Tania. Ainda assim, conseguiu um emprego na Rádio Guaíba, onde atuou ao lado de Flávio Alcaraz Gomes. "Ele é muito individualista, personalista e está pouco ligando para o que os outros pensam, só faz o que acha que tem que fazer. E lixe-se o resto", comenta sobre o colega. Trabalhou por três anos na emissora e depois se dedicou a fazer matérias para revistas como free-lancer.


Em 1975, foi para o jornal Hoje, matutino popular, "mal-comportado e extremamente irreverente", lançado pela RBS. "Nosso negócio era ir atrás das mazelas. Ali, conseguimos arranjar briga com todo mundo: Arena, MDB, Brigada Militar, Secretaria do Interior e Justiça?", lista. "Trabalhávamos com muitos estagiários, que escreviam bastante mal - porque o ensino já estava decadente naquela época -, mas que tinham uma gana muito grande em trazer matéria", complementa. "Nos divertíamos muito. Tinha censores na Redação, que mandavam tirar metade das matérias, mas à noite íamos na gráfica e recompúnhamos o jornal. Era uma loucura!", diverte-se. O resultado foi que, de uma vez só, foram demitidos 130 profissionais, quando o diário deixou de circular. Em 1976 passou pelo Coojornal - jornal da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre -, onde ficou até 1979, quando começou a atuar na revista Construção, voltada para a área de Engenharia e Tecnologia.


Uma anarquista sempre


Essa foi sua última experiência em veículos, até o ano passado, quando lançou o site www.becodavelha.com, que foi interrompido em outubro, "porque todas as pautas furaram", critica: "Não consegui retorno. O poder público parece achar que Jornalismo é dispensável, e a coisa funciona na base do press-release. Nem indo até Brasília, recentemente, consegui acesso a alguns órgãos". Ela entende que ocorreu uma "direitização" da imprensa: "Hoje, não há mais espaço para nanicos. Eles estão na internet, mas nanico de papel é raro", argumenta. "Também há uma resistência, subjetiva ou ideológica, ao trabalho anônimo, coletivo", reclama, acrescentando que seu coração é anarquista: "Me considero uma anarco-marxista, porque acho que as duas coisas têm que se juntar". Embora anarquista, Tania foi fundadora do PT nacional. "Tive muita militância, mas agora tô de saco cheio, e já faz tempo! Principalmente, pelo abandono das bandeiras", diz.


Tania, que nunca abandonou sua faceta de escritora, já estava, no início da década de 1980, decidida a embarcar na experiência de escrever um folhetim épico, sobre os anos 70 no Brasil e na América Latina. Com a morte de seu pai, que lhe deixou alguns imóveis, resolveu que era hora de colocar o desejo em prática e iniciou uma longa pesquisa de campo para conceber o "Beco da Velha" (origem do nome do site), que resultou em 14 volumes e cerca de 200 personagens: "O "Beco da Velha" foi concebido em cima da experiência jornalística e da pesquisa de campo, levando uns 14 anos para ser elaborado e envolvendo diversas viagens, inclusive aos ambientes da Guerrilha do Araguaia (dezenas e dezenas de depoimentos e testemunhos que deram base à ficção). Conta o dia-a-dia de uma comunidade aqui de Porto Alegre, que é o Beco da Velha", destaca.


A obra segue inédita, mas a jornalista publicou, além de "Fuga" e "Adão e Eva", os livros de contos "O 35º Ano de Inês", "Vinde a mim os Pequeninos" e "Tradição, Família e Outras Estórias" e o romance autobiográfico "Mário/Vera". Também participou de mais de 20 antologias no Brasil e no exterior. Tania, que nunca se casou, começou a escrever o romance autobiográfico logo após a morte de Miguel, pai de seu único filho, Daniel, que ele mal chegou a conhecer. Os personagens Mário e Vera são, portanto, codinomes para Miguel e Tania. "Imediatamente após a morte, comecei a escrever, como catarse, mas depois não consegui mais. Só 10 anos depois mostrei o que tinha ao editor Carlos Appel e ele me incentivou a terminar. Sugeriu que me estendesse mais sobre o ambiente, o contexto geral. Então, tive que voltar atrás, fazer pesquisa para a minha autobiografia", conta. A história se passa no Brasil de 1962 a 1964.


Ligação com o lazer


Tânia tem dois netos, Davi Cainã, de 12 anos, do primeiro casamento de Daniel, e Leila, um ano, do segundo. O menino passa mais tempo com a avó - como pratica basquete no Grêmio Náutico União, costuma ir à sua casa (ela mora na Coronel Bordini e tem pavor das obras que acontecem atualmente na região) após os treinos. Baixinha, a jornalista explica como Davi pode jogar basquete: "Ele não puxou à avó!", brinca. Além de brincar com os netos, Tânia tem outros hobbies, embora diga que não é uma pessoa muito ligada a lazer: "Não sei se é porque sempre tive uma vida muito difícil?", divaga. Ela gosta de ouvir música, pintar e fazer miniaturas. Seu apartamento está cheio de suas pequenas esculturas, a maioria remontando a cenários de "Beco da Velha", e de seus quadros a óleo, que já renderam uma exposição, em 1958. Sem falar em ler e escrever: "Tudo me motiva. O problema é que o corpo vai ficando velho e deixando de acompanhar a cabeça".

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