Valtair Santos: Memória do Jornalismo

De jovem radialista testemunha da morte de Kliemann a cartola de futebol, não faltam histórias a quem comeu o pão que o diabo amassou

Por Poti Silveira Campos

Aos 67 anos, Valtair Santos mantém uma excelente memória. Relembra partidas ocorridas há cinco décadas, repete escalações, a equipe médica e os bandeirinhas. Se facilitar, aponta até mesmo quem teriam sido os gandulas. Além da capacidade mental para recordar nomes e acontecimentos, foi testemunha e personagem importante da cobertura de futebol no Estado nos últimos cinquenta anos. Profissional de três mídias - jornal, rádio e TV -, ele se diz aposentado, mas, certamente, ainda tem história muito para contar - e não só de futebol.

No dia 31 de agosto de 1963, por exemplo, Valtair tinha 19 anos e era locutor, desde 1960 - ele começou aos 16 anos -, na Rádio Santa Cruz. Naquela tarde, chegou ao estúdio da emissora sem imaginar que assistiria a um dos mais rumorosos crimes já ocorridos no Estado - o assassinato do deputado estadual Euclydes Kliemann (PSD). O político, que ainda vivia a dor da morte da mulher - a bela Margit também havia sido assassinada, pouco mais de 14 meses antes, no dia 20 de junho de 1962 -, levou um tiro de calibre 38 no peito. O autor do disparo foi o vereador Floriano Peixoto Karan Menezes (PTB), o Marechal. No microfone da Rádio Santa Cruz, o trabalhista discursava palavras ofensivas a Kliemann, que invadiu o estúdio, mão esquerda erguida - como quem diz "pare" - e proferindo as últimas palavras - "Essa não". Marechal levantou da cadeira, sacou o Smith & Wesson e atingiu o coração do deputado.

"Euclides Kliemann teria sido governador do Estado", avalia Valtair, que acredita que o crime foi premeditado, ao contrário do que afirmava a defesa do vereador - um ato instintivo de defesa, ao supor que o adversário político pretendia atacá-lo fisicamente. Valtair conversava com Kliemann em outro recinto da rádio quando o parlamentar decidiu invadir o estúdio. "Não tive nem tempo de dizer 'deputado, onde o senhor vai?", relata. Mais tarde, naquele mesmo sábado, a pedido do jornalista Dilamar Machado, morto em 2001, o jovem locutor Valtair, em boletim na Rádio Gaúcha, noticiou ao Rio Grande do Sul o crime que testemunhara.

O pão que o diabo amassou

O trabalho chegou cedo à vida de Valtair. "Sou de família pobre. Comi o pão que o diabo amassou", diz o mais jovem dos cinco filhos do casal José Rodrigues dos Santos e Maria Enedina dos Santos, funcionários de uma fábrica de fumo em Santa Cruz do Sul. José Rodrigues era capataz. "Acima dele, na fábrica, somente os donos." Mais tarde, depois de presenciar e testemunhar sobre ato de violência contra um colega, o pai deixou o emprego e se tornou agricultor. Tempos difíceis para Valtair, que logo partiu em busca de emprego. A Rádio Santa Cruz foi a primeira oportunidade.

Ficou até 1965 na terra natal. Veio para Porto Alegre em 1965, por recomendação do jornalista Estevam Romano, que trabalhava na Rádio Difusora, hoje Band. E lá se foi Valtair para a Difusora. Mais cinco anos. No período, no entanto, também ingressou em Zero Hora - em 1967. Três anos depois, foi para a Rádio Gaúcha a convite de Jorge Alberto Mendes Ribeiro (1929-1999). Naquele mesmo ano, porém, Maurício Sirotsky decidiu praticamente fechar a editoria de esportes da emissora. Valtair foi, então, encarregado de cuidar da cobertura esportiva (leia-se futebol) da TV Gaúcha, hoje RBS TV. Ele era a equipe de um homem só. Acima estava o chefe da programação, José Antônio Daudt (1940-1988).

Assim como a rádio, a TV Gaúcha não transmitia jogos na época - exceto para um público muito, muito especial. Nada menos que o general Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), presidente do Brasil entre 1969 e 1974, num dos períodos mais duros da ditadura militar. Médici e o então ministro da Casa Civil, João Leitão de Abreu (1913-1992), eram gaúchos e gremistas. Quando havia jogos do time tricolor no Estado, a TV Gaúcha fazia uma gentileza muito especial para os mandatários. Valtair tinha de se desdobrar para dar conta do trabalho, que incluía reportagens, comentários e, evidentemente, locução. O problema é que não havia locutor.

Com microfone, mas sem dinheiro

"No primeiro jogo, o Mendes Ribeiro não apareceu para fazer a locução", relembra - havia, naquele momento, um desentendimento entre Mendes e Sirotsky. A solução veio com um locutor que trabalhava, então, para a Rádio da Universidade - Celestino Valenzuela. "Dinheiro não tem, mas tem microfone para ti na rádio", disse Valtair a Celestino, depois de receber carta branca de Sirotsky para convidar o funcionário federal - desde que não houvesse despesa, é claro. Celestino foi, ficou e, com a retomada da cobertura de futebol nas emissoras da Gaúcha, acabou se tornando um dos maiores narradores esportivos do Estado.

Valtair ficou 10 anos na Rádio Gaúcha. Saiu de lá em 1980 para trabalhar na TV Difusora, que havia sido adquirida pelo Grupo Bandeirantes. Na emissora, além de microfone, havia dinheiro. "Eu ganharia cinco vezes mais", relembra o profissional, que assumiu a chefia de esporte. A casa reunia nomes de muito prestígio, como Daudt, Tatata Pimentel, Renato Pereira, Cláudio Britto, Lauro Quadros, Larry Pinto de Faria, Sérgio Schueller, José Fontela, Magda Beatriz, Sérgio Jockymann, Tânia Carvalho e José Fogaça. Em 1982, Valtair deixou a emissora e Zero Hora para se dedicar a uma atividade até então pouco desenvolvida no setor de comunicação no Estado: assessoria de imprensa.

No caso, ele iria assessorar a Federação Gaúcha de Futebol (FGF) e um dos mais notórios presidentes da entidade, Rubens Hoffmeister, morto em 2001. "O salário era bom, e a responsabilidade, alta", diz Valtair. Bem alta. Além de cuidar das coisas de comunicação - nesse sentido, Valtair vinha colaborando com Hoffmeister desde 1977 -, o jornalista acabou cuidando inclusive de questões administrativas da federação e até mesmo da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) - foi supervisor das categorias de base da instituição nacional entre 1983 e 1986.

Cartolinha, mas com muito orgulho

Para colegas de imprensa, a aproximação de Valtair com a FGF e com a CBF era motivo de críticas. "Havia quem me chamasse de 'Cartolinha', mas eu me orgulho de ter sido um dos pioneiros em algo que hoje dá emprego para muita gente, que é a assessoria de comunicação profissional na área esportiva", destaca Valtair. Cartola ou cartolinha, o jornalista voltou às emissoras de rádio e de TV em 1986, desta vez na Rádio Farroupilha. Depois, passou algum tempo envolvido em um negócio mal-sucedido com a Rádio Tupi, de São Paulo. Aposentado, foi convidado a organizar a assessoria de comunicação das Centrais de Abastecimento do Rio Grande do Sul S.A (Ceasa RS), no governo Pedro Simon (1987-1990). A tarefa, contudo, logo evoluiu para algo bem maior.

Pouco depois de chegar à Ceasa, Valtair foi levado para a comunicação da Secretaria da Agricultura. Na pasta, um dos primeiros desafios, praticamente o batismo de fogo na nova função, foi enfrentar uma invasão da sede da secretaria, no Bairro Menino Deus, em Porto Alegre, por agricultores de Capela de Santana. "Dei uma de macho. Cheguei lá e dei cinco minutos para desocuparem o prédio", relata. Depois, negociou e se saiu bem. Tão bem que acabou se tornando titular da Secretaria do Funterra no Estado - o equivalente a um secretário de reforma agrária.

Hoje, é um empresário. Dedica-se ao ramo de turismo desde 2001, quando decidiu abrir uma pousada. A ideia original era se estabelecer em Santa Catarina, mas, orientado por um empreendedor do ramo no Estado vizinho, acabou optando pela Serra Gaúcha: comprou uma área de terra de 13 mil metros quadrados em Canela. A construção das instalações demorou três anos até ser concluída. A operação durou de 2007 a 2010. Recentemente, vendeu o negócio: "Dá dinheiro, mas também dá muito trabalho".

Um cara dedicadíssimo à família

Casado há 41 anos com a dentista Elvira Maria Kaizer dos Santos, Valtair diz ser "um cara dedicadíssimo à família". O casal tem três filhas - Cristina, 40 anos, Suzana, 36, e Denise, 33 - e vive num casarão no Bairro Santo Antônio, pois não admite morar em apartamento "de jeito nenhum". Tem hábitos simples: gosta de ver TV, torcer pelo Internacional e de assar churrasco. "Não tem domingo que eu não faça churrasco para minhas filhas", confessa. A carne preferida? Costela. Depois, vazio. E diz novamente: "Comi o pão que o diabo amassou. Gosto de tudo".

Nos planos para o futuro, Valtair cogita a possibilidade de escrever livros: o caso Kliemann - o assassinato de Margit, não solucionado até hoje, completa 50 anos em 2012 - e a história da FGF estão entre os planos. Na avaliação de Valtair, a produção sobre a entidade de futebol seria uma publicação polêmica e, por isso mesmo, mais difícil de ser realizada. "Acho que iria dar muito processo", diz.

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