Igualdade de gênero além do discurso

Por Cleidi Pereira, para Coletiva.net

Com algumas décadas de atraso, parece que, finalmente, o tema da igualdade de gênero entrou na pauta da imprensa brasileira. Todas as iniciativas - como a campanha #deixaelatrabalhar - são mais do que bem-vindas. É urgente e necessário promover esse debate num País que tem uma das mais altas taxas de feminicídio do mundo: com 4,8 assassinatos a cada 100 mil mulheres, o Brasil é o quinto colocado num ranking composto por 83 países, segundo o Mapa da Violência 2015. Além disso, mesmo sendo maioria da população e tendo, em média, mais escolaridade do que os homens, as mulheres ainda estão sub-representadas na política e nos cargos de chefia nas empresas. Seja na esfera pública ou na privada, os desafios são imensos.

Assim como a publicidade, os veículos de comunicação foram, e ainda são, responsáveis pelo que o sociólogo francês Pierre Bourdieu chamou de "manutenção das estruturas de dominação masculina". Como? Reproduzindo estereótipos de gênero, culpabilizando as vítimas, deixando de lado temas como a descriminalização do aborto, entre outros. Então, é preciso fazer muito mais do que apoiar ações que normalmente partem das colaboradoras. Há um longo caminho de autocrítica e desconstrução pela frente.

Quem já trabalhou em uma redação sabe o quão machista esse ambiente pode ser. Assédios são corriqueiros, assim como frases e comentários misóginos ditos em alto e bom tom. Esse machismo acaba se refletindo, mesmo que inconscientemente, nas pautas, na escolha das fontes, nos textos (vocês lembram da infeliz crônica sobre uma estagiária publicada pelo Correio Braziliense?). Não vale só apontar o dedo para fora. Para ser efetiva e não ficar apenas no discurso, a igualdade de gênero deve ser construída de dentro para fora.

A representatividade importa, mas é um pequeno passo. Não basta que as mulheres sejam metade ou até mais das redações. No jornalismo, a porta de vidro que dificultava a entrada delas na profissão foi quebrada há muito tempo. Contudo, ainda existem muitas paredes e tetos invisíveis que impedem que elas avancem para áreas "masculinas", como esportes. As mulheres jornalistas/locutoras/repórteres/apresentadoras precisam ter as mesmas chances que seus colegas homens, as mesmas oportunidades de serem, por exemplo, promovidas ou escaladas para grandes coberturas.

Respeito e igualdade de oportunidades não passam de pré-requisitos mínimos. O fundamental, e provavelmente o mais difícil, é fazer com que a igualdade de gênero se reflita no dia a dia, da apuração à edição. Ou seja: do esforço do repórter para dar mais voz às mulheres ao olhar atento do editor para não deixar o machismo passar nas entrelinhas. 

Mas até lá, inúmeras capas de revistas ainda exaltarão as "belas, recatadas e do lar". Também veremos muitas fotos de equipes de cobertura de Copas do Mundo com poucas mulheres. Continuaremos lendo mais artigos sobre Neymar e não sobre a Marta. E, se o Brasil voltar a ter uma mulher como chefe máxima da nação, veremos certa resistência ao feminino escancarada na preferência dos veículos pelo termo "presidente" e não "presidenta". É difícil de aceitar, mas o machismo mora nos detalhes. E todos somos - ou já fomos - machistas.

Cleidi é jornalista e mestranda em Ciência Política e Relações Internacionais, na Universidade Nova de Lisboa, onde tem se dedicado à temática feminista.

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