A criatividade é um tamagotchi

Por Silvio Pilau, para Coletiva.net

No final dos anos 90, um bichinho japonês dominou o mundo. Pequeno a ponto de caber na palma da mão, virou febre junto à criançada de diversos países, tornando-se, ainda que momentaneamente, tão querido quanto os traiçoeiros gatos, os fiéis cachorros ou os adoráveis e fofinhos porquinhos-da-índia. Era o Tamagotchi. Sua grande diferença em relação a outros animais de estimação? O pequenino não passava de um aparelho eletrônico.

Quem não sofre com problemas de memória deve se lembrar do Tamagotchi. Era um bichinho virtual que precisava ser acariciado, bem tratado e, acima de tudo, alimentado. Caso contrário, adieu. Bye bye. O e-Totó morria, para desespero de seus pequenos e imberbes donos. Deixar o pobre animal biônico de lado não significava apenas condená-lo ao esquecimento, à tristeza, à solidão e ao alcoolismo, mas sim perdê-lo de vez para o paraíso dos robozinhos.

Ainda que a febre dos animaizinhos virtuais tenha acabado, todo mundo tem o seu 'Tamagotchi'. Ele, porém, atende por outro nome: Criatividade.

Gosto de pensar que todas as pessoas são criativas. Acredito que qualquer um possui a capacidade de encontrar soluções para problemas, o que não deixa de ser uma definição de criatividade. O grande diferencial entre pessoas 'comuns' e quem trabalha com criatividade - seja na publicidade, na arte, na literatura, na pintura ou onde for -, é o fato de ela ser indispensável. Para os profissionais, é a matéria-prima da produção. Não dá para ser criativo só de vez em quando. É preciso sê-lo a todo momento, sem descanso.

Não é uma tarefa fácil. Muita gente pensa que a criatividade é um dom. Que, a cada segundo, centenas de ideias brilhantes pululam feericamente em nossas mentes. Pensam que as lâmpadas estão sempre se acendendo. Não é bem assim. Certamente, alguns têm mais facilidade que outros. Mas ser criativo, na verdade, é um esforço contínuo, tão ou mais exaustivo do que lavar pratos ou carregar tijolos o dia inteiro. É uma luta diária, cansativa, e muito mais árdua do que a maioria imagina.

E aí entra o grande segredo: a criatividade, para seguir viva, ativa, precisa ser alimentada. Todo dia, toda hora, todo minuto. A criatividade é um Tamagotchi. Se o dono não alimentá-la, não protegê-la e não dar carinho, ela vai definhar e morrer. Simples assim. É fundamental mantê-la sempre forte e bem nutrida. Como? Devorando livros, filmes, pinturas, música e vivendo a própria experiência do dia a dia. A criatividade é gulosa. E sem paladar. Ela se alimenta de tudo. Quanto mais variado for o cardápio, melhor. Com uma vantagem: ela jamais será saciada.

Ler de Kafka a Harry Potter, assistir de Murnau a Michael Bay, ouvir de Beethoven a Anitta, apreciar de Vermeer a Romero Britto. Falar com executivos e com porteiros, visitar museus e botecos. A criatividade não tem um prato favorito. Ela só precisa ser nutrida. Sem amarras, sem restrições. Ela se constrói através de associações, e essas associações só podem ser feitas por quem tem referências. Quanto mais bagagem na cachola, mais conexões a mente será capaz de fazer e mais criativa ela será.

A grande vantagem é que cuidar desse animal de estimação chamado criatividade é um prazer. Brincar com ele, um deleite. E, depois que a gente se apega, sua companhia pode se tornar um vício.

Como foram aqueles animaizinhos virtuais no final dos anos noventa.

Silvio Pilau é redator publicitário e escritor.

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