A Volta do Professor de Salamanca

Por J. A. Moraes de Oliveira O homem baixo usava uma velha boina basca. Me saudou sorridente, apertando minha mão com entusiasmo, como se …

29/09/2006 00:00
Por J. A. Moraes de Oliveira

O homem baixo usava uma velha boina basca. Me saudou sorridente, apertando minha mão com entusiasmo, como se compartilhássemos antigos e misteriosos segredos.

Eu já tinha visto aquela boina em algum lugar, mas não lembrava de onde conhecia aquele homem. Minha memória acordou quando ele mencionou nosso encontro em um remoto aeroporto do Norte.

? Já sei ? és o professor de Salamanca que consegue farejar mentiras.

Ele riu, entre encabulado e envaidecido. Me tomou pelo braço e caminhamos ao longo em direção ao porto, ao longo de uma ensolarada Las Ramblas. Estávamos em Barcelona e eu andava à procura do monumento a Cristóvão Colombo, quando o homem de boina basca me detivera e agora me conduzia para o lado oposto.

Entramos em um pequeno bar com mesas na calçada, de onde se podia avistar um pedaço do Mediterrâneo sob um céu de puro azul-topázio.

Certamente que não podia haver hora nem lugar menos apropriados para se recordar uma noite gelada em um aeroporto bloqueado pela neve.

***

O homem de boina basca pediu dois brandies, piscando um olho cúmplice, mostrando que lembrava o que havíamos bebido na última vez. Ele parecia mais velho, mas conservava o olhar brilhante de quem é senhor de segredos que poucos conhecem.

Começou contando que estava em Barcelona para fazer uma palestra na Academia Real de Ciências e Artes, sobre mitos e crenças religiosas da antiguidade. Devo ter feito uma cara de dúvida, pois ele acrescentou:

? Lembra de minha experiência sob a chuva de estrelas em Santiago de Compostela? Aquilo mudou completamente minha vida. A capacidade de cheirar mentiras é apenas um truque banal, se comparado com as habilidades que adquiri naquela noite e que só descobri mais tarde.

Permaneci calado, tentando entender onde o homem de Salamanca estava querendo chegar. Como ele já devia estar acostumado com as reações de incredulidade, me olhava com um ar complacente enquanto falava sobre as extraordinárias faculdades que adquirira no Cabo Finisterra.

? Quando voltei a lecionar em Salamanca, me surpreendi ditando textos inteiros de antigos manuscritos e livros de Teologia que nunca havia lido. Fiquei assustado e fui até a biblioteca da universidade para procurar o que eu recitara com tanta facilidade.

Parou por um momento, esvaziou o copo e pediu mais duas doses duplas. Aproveitei a pausa para admirar as pessoas que passeavam ao longo do cais, desfrutando do luminoso final de tarde.

Mas o professor continuava sua narrativa e eu começava a ficar cada vez mais interessado no que ele estava dizendo:

? Meu amigo, os escritos que eu recitara estavam todos lá. Palavra por palavra, parágrafo por parágrafo. Até mesmo a carta original do rei Afonso X, de 8 de maio de 1254, que definiu o funcionamento da Universidade de Salamanca. Eu a havia citado integralmente na sala de aula, mesmo sem nunca ter posto os olhos nela. Depois, naquela mesma noite, passei horas assombrado e de olhos abertos, recitando o texto de todos os jornais e revistas da banca da rua onde moro.

Tentei interromper mas ele continuou, quase sem respirar:

? Naquele dia, descobri que posso ler qualquer texto em papel, pergaminho ou pedra, que esteja a menos de 100 metros, sem errar uma só palavra.

Com um sorriso de desafio, ele fechou os olhos e ditou o número de meu passaporte, além do dia, mês e ano de expedição e todas as datas dos carimbos de imigração das páginas seguintes.

Assustado, arranquei o passaporte do bolso do casaco e folhei página por página. E lá fiquei, naquela mesa de bar, alternando olhares incrédulos para o meu passaporte e o homem sentado à minha frente.

Ele não havia errado nenhum número, nenhuma data.

Quando recobrei a serenidade, perguntei o que ele pretendia fazer.

Demonstrando desânimo e cansaço, disse:

? Não posso continuar assim. Não consigo mais dormir em paz - todos os jornais, livros e letreiros da vizinhança ficam desfilando sem cessar em minha cabeça. Se continuar assim, vou perder minha cátedra e acabarei atado a uma mesa, servindo de cobaia para estudos científicos.

E concluiu:

? Amanhã, depois da conferência, tomarei um avião para Santiago de Compostela. E ficarei no Cabo Finisterra até que uma outra chuva de estrelas caia sobre minha cabeça e acabe com este dom demoníaco.

Soltou um gemido fundo, como se estivesse carregando o peso das palavras escritas desde tempos imemoriais por todas as civilizações que passaram pela Terra.

Apertamos as mãos e quando pedi a conta com a despesa, o professor de Salamanca falou calmamente, como se despedindo de seu dom de ler à distância:

? O total da conta vai ser de 23.635 euros e a nota terá o número B-099819122.

Até hoje tenho este recibo guardado, para ter a certeza de que eu não estava sonhando.