(Des)acelerar a vida

Por Cleidi Pereira, para Coletiva.net, em especial de Semana da Mulher

06/03/2023 15:00
(Des)acelerar a vida

Lembro bem do dia em que decidi não ter mais pressa. Minha filha mais velha tinha pouco mais de um ano e brincava na sacada do nosso antigo apartamento, em Porto Alegre, enquanto eu cumpria aquele ritual frenético matinal que sempre antecedia o percurso creche-trabalho. Era sempre uma corrida contra o relógio para não perder ônibus, embora a pontualidade no transporte público não era lá muito confiável, o que agravava a tensão do momento. Pois nesse dia, minutos antes de sair de casa, me deparo com minha filha toda suja de terra. Alheia ao andar das horas, havia metido as pequenas e curiosas mãos numa das floreiras. Parei para observar aquela cena. Pegar, sentir, explorar, cheirar. O presente, um presente. Não era justo interromper a brincadeira, que, na verdade, era mais do que isso: era ela, recém-chegada, descobrindo o mundo. Foi neste exato momento que decidi desacelerar. Foi também neste exato momento que, inconscientemente, comecei a elaborar um plano de fuga. 

Naquela altura, eu trabalhava como repórter de jornal, geralmente apontada por pesquisas e estudos como uma das piores profissões, devido aos níveis de estresse aliados à baixa remuneração. Vivia correndo. De uma pauta para outra, para fechar a matéria, atrás das fontes, etc, etc. Café e adrenalina eram quase que regra no ambiente de uma redação, mas havia sempre exceções, como um experiente colega que parecia resistir àquela loucura com sua fala tranquila e passos lentos. Foi dessa rotina frenética e cada vez mais sem sentido - depois de ter colocado um ser humano no mundo - que decidi fugir. A gente ainda não sabia, mas era o início da nossa história com Portugal. 

Um mês depois daquela cena das mãozinhas sujas de terra, me candidatei a um mestrado em Lisboa. Logo veio o aceite e, mais uma vez, a pressa. Tivemos dois meses para vender quase tudo, resolver os trâmites burocráticos, encaixotar uma história, colocar objetos e memórias de três vidas em quatro malas que seriam despachadas em uma viagem só de ida. E aterrisámos em Lisboa, onde nunca antes tínhamos colocado os pés, com mais dúvidas do que certezas. Buscávamos um outro ritmo de vida, mas, após o primeiro mês de férias e deslumbre.... a pressa. A busca por trabalho, freelas, por um teto pra chamar de nosso, pra existir como números perante o Estado português. Descobri que havia um abismo entre a decisão de desacelerar e o desacelerar propriamente dito. Era preciso construir uma ponte, cuja estrutura iria, aos poucos, se materializando com pequenas mudanças de atitude no dia a dia, mas, principalmente, de mentalidade. 

O tempo foi passando. Decidimos nos responsabilizar e não terceirizar os cuidados relacionados com nossa filha, que ficaria em casa, conosco, até os seus dois anos e oito meses. O tempo dela era diferente do nosso, que agora também era diferente do dos outros, da sociedade capitalista pós-moderna. Descobri que os dias poderiam se arrastar ou passar voando, que o trabalho não-remunerado feminino é o que faz a engrenagem girar, que o cuidar, apesar de sua importância fundamental, é uma tarefa invisível. 

Quase seis anos, três filhas, um mestrado, um livro e um doutorado (iniciado) depois, posso dizer que fracassei parcialmente no meu objetivo. Claro que o ritmo de vida em Lisboa é completamente diferente daquele que vivia em Porto Alegre. Só que agora somos pais imigrantes, sem rede de apoio. E, como diz o Emicida, "tudo o que nós tem, é nós". Muita gente nos pergunta: "como vocês conseguem? Como dão conta?" Simples: não damos. Pura ilusão de ótica. Ou o sono é prejudicado, ou a casa fica bagunçada, ou são planos que ficam para depois. Hoje, sou jornalista nas "horas vagas", geralmente trabalho quando elas dormem. É uma fase, dizem que passa. "Os dias são longos, os anos são curtos." Sigo apreciando a paisagem vista da janela deste trem-bala que é a vida. Um dia ainda volto para, enfim, desacelerar. 

Cleidi Pereira é jornalista, mestre em Ciência Política e Relações Internacionais, doutorando em Ciências Humanas e correspondente internacional de Coletiva.net