Literatura, iRS e o desenvolvimento gaúcho

Por Ely José de Mattos, para Coletiva.net

Lembro a primeira vez que li 'Vidas Secas', de Graciliano Ramos. Já nas primeiras páginas tive certeza de que estava prestes a desvendar um dos maiores livros da literatura brasileira. No início da história, Fabiano e a família estavam vagando pela caatinga, cansados e famintos. Lá pelas tantas, o filho mais velho desacorçoa e se joga no chão. Neste ponto narra Graciliano:

"O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca parecia-lhe como um fato necessário - e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde."

Este pequeno parágrafo sintetiza a sensibilidade de Graciliano, expressa de forma aguda e cruel através de personagens ao mesmo tempo brutos e complexos. A genialidade do autor se materializa na construção de uma história profundamente triste, mas cheia de beleza e significado. A situação de Fabiano e da família é das piores. Perambulando por terras que transpiram morte e desespero, são explorados e subjugados por uma realidade econômica e social que os iguala aos magros e parcos rebanhos de gado. Mas, ainda assim, a essência humana que os reveste não sucumbe aos infortúnios, tornando-os personagens heroicos e gigantes.

Literatura como essa existe para transformar as pessoas, para humanizá-las. Um pouco assim é também uma análise de desenvolvimento: ela pode amplificar nossas perspectivas, tornando-nos sensíveis às questões que importam. Uma maneira de pensar desenvolvimento é perceber que sociedades desenvolvidas são aquelas onde as pessoas têm liberdade para serem e fazerem as coisas que julgam valorosas, e não necessariamente sociedades materialmente ricas. Essa é chamada perspectiva do desenvolvimento humano, adotada pelo Programa das Nações Unida para o Desenvolvimento (PNUD) há quase três décadas.

Com esta perspectiva em mente, surgiu o iRS, que é fruto de uma parceria entre PUC e Zero Hora, com apoio institucional da Celulose Riograndense. Trata-se de um índice de desenvolvimento com foco na vida das pessoas, transparente, simples e de fácil comunicação. Já na sua quinta edição, ele tem contribuído para provocar o debate sobre o desenvolvimento gaúcho e de demais estados do Brasil.

Nesta última edição, avaliando os dados de 2016, que são os mais recentes disponíveis, as notícias para o nosso Estado não foram as melhores. Na quarta posição desde 2007, quando começa a nossa série de análise, o Rio Grande do Sul caiu para quinta, cedendo lugar para o Paraná. Para entender esta perda de colocação, olhemos para as três dimensões do índice isoladamente.

Na dimensão Padrão de Vida, que avalia questões relacionadas a emprego e renda, o RS manteve-se em quinto lugar. Sofremos até um pouco menos do que a média nacional. No entanto, é importante registrar que não passamos ilesos à crise econômica, que se mostrava intensa em 2016.

Resultado muito pior é observado na dimensão Educação. Levando em consideração resultados da Prova Brasil, taxa de matrícula e taxa de distorção idade-série no ensino médio, o Estado amarga a 11ª colocação - São Paulo, Paraná e Santa Catarina são os três primeiros colocados, respectivamente. Uma importante queda foi registrada entre 2015 e 2016 em função da elevação da distorção idade-série: 30,6% dos alunos do ensino médio são mais velhos do que deveriam, em 2016. Esse resultado evidencia um problema sério do estado para manter o fluxo adequado dos jovens na escola e garantir sua formação.

A terceira e última dimensão é Longevidade e Segurança. Aqui, levamos em conta a taxa de mortalidade infantil, taxa de homicídios e taxa de mortalidade no trânsito. O Estado é o quinto colocado, sendo pressionado pela elevação da taxa de homicídio, que já passa de 28 para cada 100 mil habitantes - para se ter uma ideia da gravidade, taxas acima de 10 são consideradas endêmicas. Além disso, a taxa de mortalidade infantil está estacionada em torno de 10,2 por cada 1000 nascidos vivos.

Estes resultados são desconfortáveis. E não se trata apenas de uma questão econômica ou política. Como o iRS foca na vida das pessoas, em variáveis de resultado, o que estamos apontando é que o gaúcho está perdendo, consistentemente, qualidade de vida. Das três dimensões, quem sabe educação seja a mais representativa da situação que vivemos: olhamos com pesar para um sistema educacional com seríssimas dificuldades, quando há tempos atrás era um motivo de orgulho.

Estes resultados estão bem alinhados com o que as pessoas efetivamente sentem no seu cotidiano. A afirmativa de que o RS deixou de ser a 'Europa brasileira' campeia pelos nossos pagos com facilidade. E uma das missões mais importantes do iRS é justamente provocar o debate entre os gaúchos, seja para celebrarmos ou nos sentirmos desconfortáveis. Aliás, o desconforto em olhar para uma situação mais dura pode ser um importante incentivo para fazermos as perguntas e cobranças certas para os nossos governantes. Assim como na literatura, só nos transformamos quando nos dispomos a ler.

Ely José de Mattos é professor do Programa de Pós-Graduação em Economia.

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