O Consenso de Porto Alegre

Por Vilson Antonio Romero* No V Fórum Social Mundial, realizado neste final de janeiro, em Porto Alegre, ficou demonstrado claramente que há uma multidão …

03/02/2005 00:00
Por Vilson Antonio Romero* No V Fórum Social Mundial, realizado neste final de janeiro, em Porto Alegre, ficou demonstrado claramente que há uma multidão de pessoas de todas as partes do mundo interessadas em buscar alternativas à atual política vigente no Planeta. Como não temos como fugir da globalização, o apelo é que ela se transforme aos poucos numa internacionalização solidária, com respeito aos direitos humanos, com o resgate da dignidade de 2,8 bilhões de seres que estão na miséria em todo o mundo, de metade dos trabalhadores da Terra que vive com menos de US$ 2 por dia ? 550 mil dispõem de menos de US$ 1 para seu sustento diário ? e um quarto desta gente nunca teve acesso a um copo de água potável. Mais de 800 milhões de pessoas, cerca de 13% da população mundial, passam fome ? uma criança morre de fome no mundo a cada cinco segundos, ou seja, cinco milhões de pequenos inocentes famintos sucumbem a cada ano ? e têm doenças relacionadas com a desnutrição, segundo a Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO). Com base nestes dados, apavora a manutenção do receituário neoliberal adotado por instituições como o FMI, Bird e o próprio Banco Mundial, que professa a sustentabilidade financeira às nações tendo como premissas o estímulo aos investimentos externos, às privatizações generalizadas, ao controle sem tréguas das contas públicas, à desregulamentação e à indiscriminada abertura comercial dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. John Willianson, em 1989, cunhou a expressão Consenso de Washington ao elencar um leque de princípios que se ajustavam a esta cartilha, ganhando repercussão internacional, tendo como alvo principal a América Latina, e como premissa básica o controle econômico, ignorando quase que completamente a faceta social. O receituário imprimido com base neste Consenso de Washington já deu mostras de esgotamento, pois, claramente, incentivou a concentração de renda, a desigualdade social, a exclusão de milhares e milhares de cidadãos de todos os paises, criando um fosso imensurável entre terráqueos. Não é possível seguir nesta trilha: este foi o brado ressonante em todas as cinco edições do Fórum Social Mundial, culminando com a materialização de propostas no evento deste ano. Um grupo de renomados ativistas e intelectuais do porte de Adolfo Pérez Esquivel, Eduardo Galeano, José Saramago, Armand Matellar, Boaventura de Sousa Santos, Ignácio Ramonet; Ricardo Petrella e Emir Sader, entre outros, lançou o documento Doze Propostas para Outro Mundo Possível, que apesar de não ser adotado oficialmente pelo conselho do Fórum, já pode ser apresentado como o Consenso de Porto Alegre. O manifesto propõe o cancelamento da dívida pública dos países do sul, a taxação internacional das transações financeiras e o desmantelamento progressivo dos paraísos fiscais, jurídicos e bancários. Além disso, ele pede também a proibição de todo o tipo de patente de conhecimento e seres vivos, assim como da privatização de bens comuns da humanidade, em particular a água. Enquanto a neve quase encobre a cidade de Davos e os participantes do Fórum Econômico Mundial começam a incluir em sua pauta o combate à fome e à pobreza, o documento apresentado no calor senegalesco de Porto Alegre já materializa uma ponte entre os gigantes ricos do hemisfério norte e o subdesenvolvimento e a miséria do sul do Planeta. Os principais pontos do manifesto são: 1) Anular a dívida pública dos países do Hemisfério Sul, que já foi paga várias vezes e que constitui, para os Estados credores, os estabelecimentos financeiros e as instituições financeiras internacionais, a melhor maneira de submeter a maior parte da humanidade à sua tutela; 2) Aplicar taxas internacionais às transações financeiras (especialmente a Taxa Tobin às transações especulativas de divisas); 3) Desmantelar progressivamente todas as formas de paraísos fiscais, jurídicos e bancários, por considerá-los como um refúgio do crime organizado, da corrupção e de todos os tipos de tráficos; 4) Cada habitante do planeta deve ter direito a um emprego, à proteção social e à aposentadoria, respeitando a igualdade entre homens e mulheres; 5) Promover todas as formas de comércio justo, rechaçando as regras de livre comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC). Excluir totalmente a educação, a saúde, os serviços sociais e a cultura do terreno de aplicação do Acordo Geral Sobre o Comércio e os Serviços (AGCS) da OMC; 6) Garantir o direito à soberania e segurança alimentar de cada país, mediante a promoção da agricultura campesina. Isso pressupõe a eliminação total dos subsídios à exportação dos produtos agrícolas, em primeiro lugar por parte dos Estados Unidos e da União Européia. Da mesma maneira, cada país ou conjunto de países deve poder decidir soberanamente sobre a proibição da produção e importação de organismos geneticamente modificados destinados à alimentação; 7) Proibir todo tipo de patenteamento do conhecimento e dos seres vivos, assim como toda a privatização de bens comuns da humanidade, em particular a água; 8) Lutar por políticas públicas contra todas as formas de discriminação (sexismo, xenofobia, anti-semitismo e racismo. Reconhecer plenamente os direitos políticos, culturais e ambientais (incluindo o domínio de recursos naturais) dos povos indígenas; 9) Tomar medidas urgentes para pôr fim à destruição do meio ambiente e à ameaça de mudanças climáticas graves. Implementar outro modelo de desenvolvimento fundado na sobriedade energética e no controle democrático dos recursos naturais; 10) Exigir o desmantelamento das bases militares estrangeiras e de suas tropas em todos os países, salvo quando estejam sob mandato expresso da Organização das Nações Unidas; 11) Garantir o direito à informação e o direito de informar dos cidadãos mediante legislações que ponham fim à concentração de veículos em grupos de comunicação gigantes; 12) Reformar e democratizar em profundidade as organizações internacionais, entre elas a Organização das Nações Unidas (ONU), fazendo prevalecer nelas os direitos humanos, econômicos, sociais e culturais, em concordância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Isso implica a incorporação do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial do Comércio ao sistema das Nações Unidas. Caso persistam as violações do direito internacional por parte dos Estados Unidos, transferir a sede da ONU de Nova Iorque para outro país, preferencialmente do Sul. Por mais que algumas destas propostas tenham um evidente viés ideológico e bases utópicas, somente com o debate continuado e a democratização dos recursos do Planeta, poderemos, aos poucos chegar mais próximos de promover o chamado Dissenso de Washington, ao encontro da afirmação do economista John Kenneth Galbraith, feita em 1997, durante palestra na Universidade de Toronto: "Há uma obrigação internacional que os países afortunados devem assumir: a preocupação pelo bem-estar humano não termina nas fronteiras nacionais. Deve estender-se aos pobres de todo o planeta; fome, doença e morte são causas de sofrimento humano onde quer que sejam experimentadas". E com isto construirmos, ainda na primeira metade deste século, um novo retrato do planeta: mais equilibrado, com menos miséria e fome, tornando os terráqueos mais iguais. * Vilson Antonio Romero é jornalista, auditor fiscal da Secretaria da Receita Previdenciária, conselheiro da Associação Riograndense de Imprensa e consultor da Fundação Anfip de Seguridade Social. vilson.romero@terra.com.br