O livro que falta: a amizade de Paulo Sant"Ana e Carlos Bastos

Por Emanuel Mattos Os editores de livro do Rio Grande do Sul são ? com escassas exceções ? umas bestas quadradas. Há mais de …

06/03/2009 00:00
Por Emanuel Mattos

Os editores de livro do Rio Grande do Sul são - com escassas exceções - umas bestas quadradas. Há mais de 50 anos, Porto Alegre realiza em meados de novembro a sua Feira do Livro, que ocupa a Praça da Alfândega e cercanias. Nos últimos tempos, ela se estende até a altura do abandonado cais do porto.

Nessa época, cerca de 200 autores lançam livros ou, ao menos, se revezam em sessões de autógrafos, três ou quatro ao mesmo tempo. Quando passo naquele local, vejo uns sujeitos sentados, tendo dois ou três parentes ou amigos, solidários, à espera de que uma alma penada venha com um exemplar do que ele cometeu. Algo bizzarro, tipo "Quando parei de beber, a vida passou a ter sentido". Ou "Minha mãe queria que eu fosse padre, mas acabei sendo corno". Ou a coletânea poética: "No fim de tudo, só restou o vento e a minha sogra Doralice". Ou sandices semelhantes. O autor confessional imagina ter produzido aquele sucesso que vai levá-lo direto ao Prêmio Nobel de Literatura.

É de cortar o coração ver cenas similares, que se repetem, de forma enfadonha. Se diz que o sujeito pra ser completo tem que fazer um filho, plantar uma árvore e escrever um livro. Eu acrescentaria: alguns deveriam puxar carroças.

Aí, chega o balanço da feira e o responsável anuncia, todo pimpão, que foram batidos os novos recordes: "Vendemos o total de 505 mil exemplares, oito por cento a mais do que no ano passado". E os canetinhas anotam compenetrados, com o impacto da informação de que a pólvora, finalmente, foi descoberta. Ora, isso aconteceu no século 15, junto com a bússola, o papel e a Oceania. Numa época em que os padres casavam e tinham filhos, não apenas comiam crianças.

Há algum tempo, para não ferir suscetibilidades, acabaram com aquela relação diária dos livros mais vendidos. Os despeitados acusaram que a lista era manipulada, havia interesses escusos, editoras sistematicamente beneficiadas.

Mas o leitor, em geral, não é bobo e compra o que mais desperta a curiosidade. A L&PM, por exemplo, em geral é a líder porque praticamente trabalha todo o ano em livros e autores que, de fato, podem fazer sucesso. E em geral, acerta.

Parêntesis: Não tenho procuração para defendê-la. Ao contrário, gostaria que quebrasse depois que ofereci meus préstimos para revisão e fui tratado como semi-analfabeto por uma burocrata, que ainda depositou 30 reais na minha conta falida do Banrisul por um texto considerado como teste pela editora.

"Tu não reescreveste algumas frases", justificou. Ou seja, bom revisor é aquele que pega um texto autoral e modifica o que o sujeito escreveu. E esse idiota preocupado em colocar os pontos e as vírgulas no lugar certo. Que vexame?

Mandei enfiar os 30 reais, mas a coitada foi diligente: depositou o pífio valor na minha conta interditada no banco que o Fernando Lemos administra há anos, para desespero do arquiinimigo Paulo Feijó. E assim caminha a humanidade?

O fato é que o editor Ivan Pinheiro Machado, sujeito culto e antenado, garante o sucesso da L&PM porque tem entre seus contratados os gaúchos que são sucesso garantido. Todo o ano há um livro do irmão cozinheiro, José Antônio, com receitas, seja de empadinhas, croquetes ou rabanadas. Não tem erro. E já sai da fila de autógrafos com idéias que as velhas levam: quitutes e acepipes.

Ou então o David Coimbra com o mix de mulheres e futebol. Como já passou por todas as posições (a mulher do centroavante, a do zagueiro) esse ano deve sair uma com a mulher do bandeirinha, ou a do gandula. Outro sucesso na certa. Sugiro a ele uma obra inédita, que teria repercussão tremenda: "A mulher do torcedor". Ou quem sabe em duas versões: "A mulher do torcedor gremista" e "A mulher do torcedor colorado". Já pensou que baitas filas, David? Bá.

Ambos passam o ano com a cara no vídeo e, assim, qualquer coisa vende.

Mas o Ivan não se limita aos astros televisivos locais, que ele não é bobo nem nada. Ano passado marcou um golaço ao trazer a Porto Alegre o incensado Eduardo Galeano, que recém lançara mundialmente o livro "Espelhos", que foi, disparado, o maior sucesso da Feira do ano passado (conforme registrei).

O resto é de dar pena. Sempre aparece alguém que revisita a história da Revolução Farroupilha, fixação gaudéria que nem Freud explicaria. Aquela guerra que perdemos, assinamos o empate e festejamos a vitória, segundo o sempre cáustico Juremir Machado da Silva. Por sinal, outro autor amigo que volta e meia - tirante o romance "Getúlio" (Editora Record) - ultimamente só publica abobrinhas, como "Adiós, baby", "Nau frágil", "Mal dito" ou "Solo". Até investiu em auto-ajuda: "Para homens na crise dos 40 anos e mulheres interessadas em compreendê-los". Uau. Definitivamente, Juremir é um pândego.

Cadê a criatividade dos editores gaúchos? O gato comeu. Nem o escritor de maior consistência literária na atualidade, João Gilberto Noll (autor de "O cego e a dançarina", "Hotel Atlântico", "Harmada", "O quieto animal da esquina", entre tantas obras que nem sempre são lidas pelo grande público. Mas seu futuro está assegurado na literatura brasileira. Só não tem livro lançado por ano na feira. A culpa não é dele, mas da cretinice da confraria editorial que nos cerca.

Como não sou engenheiro de obra pronta, há idéias que caem de maduras, sucessos garantidos, caso fossem bem produzidas, escritas e editadas. Dou apenas um exemplo: Paulo Sant"Ana, perto de completar 70 anos, e Carlos Bastos, com 74,  são dois grandes amigos que se falam todos os dias. A amizade entre eles é ferrenha e possuem ricas histórias de vida. Todos conhecem o Sant"Ana porque ocupa os principais veículos da RBS. Sua produção literária, no entanto, limita-se ao resumo das crônicas, entre elas "O gênio idiota" e "O melhor de mim".

Carlos Bastos, presente nos últimos 50 anos da comunicação do Rio Grande (leia aqui seu perfil, publicado no Coletiva.net em 2006), acabará esquecido. Hoje, certamente eles vão se falar durante horas e perderão um tempo esculhambando a anta que jura ser treinador de futebol, esse Celso Roth, que afunda o Grêmio.

Aí eu pergunto: por que nenhum editor teve a idéia de reuni-los, gravar as histórias de ambos, que viveram, amaram e estabeleceram uma amizade comovente, nessa Porto Alegre tão carente de personagens de carne e osso? Só vão lembrar quando, daqui a pouco, um estiver chorando no enterro do outro, o que é biológico, fatal e inevitável. E por que não se conta essas histórias de ambos, ainda em vida? Resposta: porque o gaúcho tem inveja do sucesso. É isso aí.

Se eu tenho um tostão a mais e nenhuma das inúmeras dívidas a pagar, juntava esses dois geniais amigos e o resultado seria lindo de se ver. O título é detalhe, mas poderia ser tanto "As mulheres na vida de Paulo Sant"Ana e Carlos Bastos" ou "Paulo Sant"Ana e Carlos Bastos resgatam Porto Alegre", ou sei lá o quê. O título é o de menos; a obra, sim, seria humana e muito consistente.

Mas não. Os editores acham que é mais oportuno editar baboseiras como o José Fortunati e Antônio Hohlfeldt: "O fascínio da estrela - trajetória e contradições do Partido dos Trabalhadores", um caminhão de ressentimentos. Que não vendeu pra burro, só pros burros. Enquanto isso, mentes brilhantes como Paulo Sant"Ana e Carlos Bastos, na última curva da vida, são ignorados.

Sim, nós merecemos os governos que temos e a gasolina mais cara do Brasil.

E pronto!, diria a professora da Ufrgs e blogueira no "Patifaria", Márcia Benetti.