O medo e a descrença no jornalismo da pós-verdade

Por Ananda Müller, para Coletiva.net

A Abraji, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, informou nesta segunda-feira, 8, que registrou um total de 137 casos de agressão contra jornalistas durante coberturas de cunho político e/ou partidário em 2018. Esse número pode ser ainda maior se forem levadas em consideração as ações não denunciadas ou que ainda não chegaram ao conhecimento da entidade. Conforme nota emitida pela entidade, são 75 ataques por meios digitais e 62 casos de agressão física.

Nos casos ocorridos no território virtual em sua ampla maioria, os profissionais têm suas vidas pessoais expostas, dados sigilosos compartilhados e a lisura do trabalho questionada. O registro mais recente de agressão física se deu contra uma repórter pernambucana ameaçada de estupro e ferida com pedaços de ferro no rosto e nos braços por eleitores durante o pleito de domingo, 7. Durante o ataque, a jornalista ouviu dos criminosos que quando o candidato que defendiam chegasse ao poder (não me cabe nominá-lo), "toda imprensa vai morrer".

E é a partir desse ponto que prossigo - com um temor que imaginei não sentir no transcurso da profissão.

Conversava ainda na semana passada com um grande amigo, mestre em História, sobre a cortina de fumaça que estamos construindo de forma quase inconsciente acerca do exercício das nossas profissões. Ele, na sala de aula. Eu, no microfone - e nas redes sociais. Nosso entendimento, por óbvio, dava conta de não abrir mão do direito que a democracia nos faculta, entretanto, percebemo-nos diante de uma palavra nova: medo.

Sim, medo. Na tarde da segunda-feira, em meio ao burburinho típico de uma redação agitada, me percebi pedindo à chefia de reportagem que usasse uma chamada genérica para um material recém-produzido e que logo seria publicado. O texto tinha como fonte um deputado eleito para a Assembleia Legislativa e, em circunstâncias normais e naturais, a chamada daria conta de uma declaração polêmica acerca de um tema que divide opiniões no País. Ao ser questionada por uma colega sobre a decisão editorial ("Mas ele não disse isso? Por que não usar no título?"), me vi respondendo sem titubear: "Sim, ele disse, mas eu não tenho nervos para me incomodar. Deixa no meio do texto que ainda vai estar na matéria." Ali, encontrei uma outra nova palavra: vergonha.

Vergonha de estar quebrando o juramento que fiz diante de centenas de pessoas quando me formei. Vergonha de não ter coragem de encarar esses novos ciclos que se apresentam. Vergonha por saber que esse sentimento (confuso, um misto de medo e comodismo) deve me acompanhar por muito tempo ainda, deixando os nervos em migalhas - os frangalhos já se foram há muito. Vergonha de não assumir as responsabilidades severas que abraçar o verdadeiro jornalismo traz nesses dias difusos. Vergonha de não fazer o que o jornalismo espera que eu faça.

Já escrevi em outra oportunidade sobre o poder das fake news na era da pós-verdade. Os termos, ao fim e ao cabo, confundem-se - mas se tornam necessários nesse contexto uma vez que nos afastam cada vez mais da possibilidade de fazer um jornalismo ideal. Esse distanciamento ocorre tanto pela necessidade do repasse instantâneo de informações, como pela interferência de outras formas de comunicação de massa, muitas delas prestando serviços de desinformação.

Por fim, o descrédito com o trabalho que executamos, coroado pelo medo de ser atacado por falar a verdade. O correto deu lugar ao desejo, o imaginário coletivo tomou o lugar da História, e o perigo por trás disso é maior do que parece. Me sinto, nessas horas, uma criatura fraca - quase um espectro a vagar por algo que o jornalismo talvez um dia tenha sido e que se perdeu.

Estamos diante do novo, sem professores ou tutores, tendo que lidar com tempestades e vendavais que não sabemos de onde vêm nem para onde vão. É uma chuva de meteoros contra tudo e contra todos, e nossos guarda-chuvas já voaram longe. Nossa única arma, a informação, foi expurgada e é vista por muitos como artigo de segunda mão, quase que uma perfumaria burocrática. Em tempos de jornalismo pelo WhatsApp, a verdade virou doutrinação ideológica.

Poucas vezes vi uma profissão ser alvo tamanho de ataques como o jornalismo atual. Muito disso, é mister que se diga, é nossa responsabilidade e requer um exercício profundo de mea culpa. Por décadas nos entendemos como intocáveis, impecáveis e irretocáveis, e essa conta chegou da pior forma possível - com juros altos e taxas impagáveis. A raiva para com nossa soberba intelectual foi destilada junto a uma horda de notícias falsas em redes sociais, todas facilmente contestáveis, mas que atendem aos anseios de uma população que quer ler, ver e ouvir aquilo que deseja, e não necessariamente a verdade. "A mídia mente", dizem, ao fazerem exatamente igual.

Nós perdemos. A sociedade perdeu. O falso abriu espaço a machadadas por entre a verdade e o racional, fazendo com que nos afoguemos em um mar de raiva e descrença. Esse poderia ser um texto sobre política, e talvez até o seja, mas em sua essência é um pedido de socorro. É tempo de encher os pulmões de ar e tentar emergir das águas turvas que nos afogam, antes de sermos tragados de vez para o bueiro da história.

A realidade que se apresenta em 2018 aceita qualquer coisa - inclusive o desespero de uma profissional que não quer desistir da vocação que a escolheu.

Ananda Müller é jornalista e repórter da rádio Guaíba.

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