Acordei empregado. Liderando um projeto incrível, diferenciado. Ao meio-dia, virei conceito: "em transição". O projeto não existia mais (90% da equipe seria desligada) e o meu algoz era conhecido por ser ímprobo e fementido. Imagina o sentimento... O celular, educadíssimo, decidiu não mais me interromper. Descobri que há dois tipos de silêncio: o das bibliotecas e o do telefone que não toca. O segundo escreve crônicas sozinho. Para não faltar assunto, a gente passa a ouvir os próprios pensamentos, ótimos em dar palpites, péssimos em pagar as contas.
Desemprego é assunto proibido. Pega mal em almoços e jantares, dá azar em mesa de bar e rende poucos coraçõezinhos nas redes. Preferimos o eufemismo: "recalibrando", "reorganizando", "num novo ciclo". Mas a vida, quando quer conversar sério, dispensa legenda. Sem cargo, a roupa social pesa, a agenda emagrece e a casa ganha eco. É aí que começam as perguntas que valem mais do que qualquer curso: quem eu sou sem o crachá? O que eu entrego quando ninguém está olhando?
A visita que senta na sala
O desemprego é aquela visita que chega cedo, tira os sapatos e avisa: "fico só uns dias". Abre a geladeira, comenta do barulho da rua e sugere que você faça listas. Listas de gastos, de contatos, de culpas antigas. No terceiro dia, você se acostuma. No quarto, começa a conversar com a visita. No quinto, percebe que ela só fala quando a casa está em silêncio, o que explica por que alguns amigos barulhentos desapareceram.
É o momento da auditoria íntima. Sem a moldura do cargo, relações se revelam no traço fino: bajulação se distingue de lealdade, plateia se separa de torcida. Alguns evaporam como história de 24 horas; outros chegam com o ativo mais raro do mercado humano: tempo - um café sem pressa, uma escuta verdadeira, uma indicação generosa. É o filtro natural da vida: menos barulho, mais substância.
Manual de instruções do vazio
Existe um manual não escrito. Quando você perde o cargo, o universo reduz notificações para economizar energia. A campainha toca menos, o espelho fala mais. Passamos a medir o tempo por xícaras de cafeína, térmicas de chimarrão e por quantas vezes reorganizamos a estante (de livros mas sobretudo dos sentimentos). Entre uma pilha e outra, a pergunta insistente: que problema eu resolvo melhor que a média?
Ajuda tratar o emocional como demonstração de resultados. Se a alma fecha no vermelho, corte custos invisíveis: comparação tóxica, medo paralisante, vaidade ociosa. Aumente a receita de sentido: mantenha uma rotina mínima (saia de casa!), disciplina do sono, algum exercício, leitura consistente, uma cota diária de conversas que não sejam ruído. Não é autoajuda. É governança pessoal. Daniel Kahneman já nos advertiu: supervalorizamos o que dói no presente; convém decantar a mente antes de servir decisões. E Viktor Frankl nos dá o eixo: "Quem tem um porquê enfrenta qualquer como."
Comunicação é afeto com método
Família, nessas horas, funciona como conselho de administração: dá lastro, alinha propósito, segura o tranco quando o caixa aperta. Os amigos de verdade - os do café sem pauta, do chimarrão demorado, do vinho que vira "brainstorming" - operam como capital paciente: acreditam antes do resultado. McLuhan lembrava: "o meio é a mensagem". Aqui, o meio é presença. É colo, mesa posta, palavra sincera. E Jung sussurra: "Quem olha para fora sonha; quem olha para dentro desperta." Sem personagem, sobra a pessoa - e é com ela que teremos de negociar.
Lições que ficam (sem verniz)
Curtida não é legado. Atenção não é admiração. Aplauso não é respeito. A descida revela quem merece mesa cativa na subida. Há um alívio quase infantil em encerrar ciclos com honestidade: agradecer o que foi, fechar a porta com cuidado e escolher outra rua. As realizações, os amigos e o respeito dos outros (os que importam) ficam como legado. Mais um pra conta.
Comigo foi assim. Depois de muitos cafés, chimarrões, vinhos - e conversas que valeram mais do que pós-graduações - tomei duas decisões. A primeira: empreender de novo. O Poder RS virou programa em áudio nas plataformas sob demanda, com liberdade criativa, independência editorial e a profundidade que o formato permite. A segunda: assumir uma missão pública que me desafia e me honra - comandar a comunicação da Prefeitura de Novo Hamburgo, ao lado de um prefeito jovem que quer transformar a realidade pelo caminho certo. Comunicação para impactar, não para maquiar; para aproximar, não para confundir.
Para quem está "em transição" (nome bonito para um terremoto)
Praticidade é antídoto contra a névoa. Três linhas de ação - simples, não simplórias:
- Mapa de pessoas: liste quem sumiu, quem ficou e quem chegou. A sua rede de relações é o esqueleto do seu futuro.
- Rotina mínima vencedora: sono, leitura, algum exercício e três contatos qualificados por dia. Trate isso como indicador de vida.
- Tese de valor: defina, com precisão, qual problema você resolve melhor do que a média - e execute sem romantização.
No fim, o desemprego é um deserto que ensina a enxergar. Cansa, mas dá visão. E visão, quando encontra coragem, vira caminho. Eu escolhi o meu: microfone aberto nas plataformas de streaming e trabalho de campo na gestão pública. Sem crachá, sem máscaras - com a convicção de que reputação é o único cargo que não se perde. Quando a conversa volta a tocar, que seja por quem somos, não pelo que vestimos no peito.
Orestes de Andrade Jr. é jornalista - (orestesdeandradejr@gmail.com)